Ao longo de sua carreira, Michael Haneke se tornou conhecido por abordar, de forma crua e contundente, a violência. Muitas vezes rotulado como um diretor trágico, o austríaco não hesita em retratar brutalidades a fim de expor sua visão de mundo, muitas vezes sendo distópico e pessimista. Em Violência Gratuita, de 1997, Haneke vai além de apenas escancarar a crueldade das pessoas. Ele afirma que a culpa de tudo isso é, também, de quem assiste.
O longa conta a história da família Schober, que vai passar uns dias de suas férias em sua elegante casa à beira de um lago, na Áustria. São eles três: Georg (Ulrich Mühe), Anna (Susanne Lothar), e o filho do casal, Schorschi (Stefan Clapzynski). Poucos minutos após chegarem à casa, são surpreendidos por dois jovens, entre 20 e 30 anos, vestidos de branco e utilizando luvas. Peter (Frank Giering) e Paul (Arno Frisch), se apresentam como ajudantes de uma família vizinha, mas logo se mostram sádicos criminosos, que aprisionam os Schobers dentro de sua própria casa e estabelecem uma condição: apostam que, dentro de doze horas, a família estará morta.
Desde o início, Haneke coloca o espectador em posição de avaliar as atitudes da dupla, e, caso julgue necessário, tomar uma atitude. Em uma discussão entre Anna e os “sequestradores”, ainda antes do enclausuramento, Georg chega para intervir, sem saber o que houve. “Eu não posso ser o juiz de algo que eu não vi acontecendo”, afirma. Ele não, mas o espectador pode, e se manteve inerte. Para o diretor, isso é uma deixa.
Rotulando como conivência o fato de o espectador estar do outro lado e não poder agir, Haneke é provocativo ao, gradualmente, quebrar a quarta parede e colocar os criminosos frequentemente interagindo com quem assiste. Uma piscada de Paul diretamente para a câmera, logo que Anna encontra o cadáver de seu cachorro, recém-assassinado, é a mensagem: “Você não fez nada até aqui, está do nosso lado então?”.
Violência Gratuita é, à sua maneira, um chamado à autocrítica. O longa de Haneke diz que, se o mundo é desse jeito, sádico e violento, é porque deixamos chegar a esse ponto.
Isso faz com que o cineasta tenha a total liberdade de colocar a câmera quase sempre na perspectiva de Paul e Peter, fazendo do espectador, praticamente um mediador. Isto é, alguém com a capacidade de analisar e julgar a brutalidade do crime, o sadismo envolvido e como tudo é feito de maneira fria. Sendo assim, Haneke testa o público a todo momento. Na mesma sequência em que Paul olha para a câmera e pergunta “Você está do lado deles?”, há um plano de Peter apontando um rifle para a família. É uma das oportunidades que o diretor dá ao espectador de responder a pergunta: “Se realmente está, coloque-se entre a arma e eles!”.
Totalmente inertes e coniventes, nos tornamos, praticamente, um terceiro elemento da gangue – Georg, inclusive, sutilmente olha para a câmera em um momento de diálogo com os criminosos -, o que permite que, de forma estarrecedora, a violência se intensifique. “Poderiam pelo menos deixar a criança viva”, pensa o espectador. Pensou errado, Schorschi é o primeiro a morrer.
Entretanto, Haneke insiste na possibilidade de ação vinda do outro lado da tela, e nos dá a última chance: um plano de onze minutos de, basicamente, uma mulher em letargia em frente ao cadáver de seu filho, e um homem, com a perna quebrada, agonizando. Mesmo assim, o casal tira forças sabe-se lá de onde, levanta e tenta procurar ajuda. “Se você, que está aí, em plenas condições, deixou isso acontecer, você não vai ter o final que você quer”. Só faltou surgir, no meio do filme, um áudio com a voz de Michael Haneke dizendo essas palavras.
Se o áudio não veio, o visual é claro. Michael Haneke vai utilizar o recurso que puder para tomar de assalto do espectador o final feliz que tanto deseja. Mesmo que o recurso seja o clique de um controle remoto, que retrocede o filme quando Anna consegue pegar o rifle e atirar em Peter. O filme, em diversos momentos, brinca com o fato de ser um filme, brilhantemente ironizando a ânsia e o narcoticismo de finais felizes
Violência Gratuita é, à sua maneira, um chamado à autocrítica. O longa de Haneke diz que, se o mundo é desse jeito, sádico e violento, é porque deixamos chegar a esse ponto. Com engenhosa condução do seu diretor e excelente uso de metalinguagem, o filme deixa o recado: se não podemos mudar o que acontece no filme, pelo menos tentemos melhorar a situação à nossa volta.
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