Ricky (Kris Hitchen) aluga uma van para trabalhar com entregas e acaba sendo dono do seu próprio negócio. Ou quase. Na verdade, ele é representante de uma franquia. Não tem férias, décimo terceiro, seguro desemprego, plano de saúde ou qualquer outro benefício que um trabalhador com carteira assinada tem. É um empregado com a ilusão de patrão. Trabalha 14 horas por dia, seis dias da semana. Ricky é o protagonista de Você Não Estava Aqui (2020), do diretor britânico Ken Loach com roteiro de Paul Laverty, a mesma dupla responsável pelo elogiado e impactante Eu, Daniel Blake (2017).
Assim como no filme de 2017, diretor e roteirista investem profundamente na provocação de reflexões sobre questões sociais. Se em Eu, Daniel Blake o que se via era a indignação diante da burocracia do Estado que impedia um trabalhador analfabeto digital de receber o seguro desemprego, em Você Não Estava Aqui o que se vê é a exposição (com extrema clareza) da “uberização” da vida, com todos os defeitos que ela contém. E o que seria, afinal, essa “uberização”? É trabalhar o máximo para ganhar o suficiente para quitar as contas e, muitas vezes, nem isso. É abdicar do tempo para si mesmo e para os mais próximos em nome da produtividade. É correr no trânsito, arriscar a própria vida (e a dos outros) para realizar entregas ultrarrápidas para clientes dos mais variados matizes temperamentais. Tudo isso sob a promessa de uma aparente flexibilidade e, claro, da promessa de enriquecimento.
As consequências dessa fragilização nas relações de trabalho, com profundos reflexos na vida pessoal e familiar, geram uma espiral ascendente de indignação e revolta, que é poderosamente compartilhada com os espectadores.
Aparente flexibilidade porque Ricky acaba tornando-se uma espécie de escravo. Ele enfrenta multa de trânsito, colegas surtando, endereços errados para entrega, dois minutos de tolerância para estar fora do carro. Caso esse tempo curtíssimo seja descumprido, lá vem um bipe irritante e inquisidor inquietar os ouvidos. Praticamente inexiste intervalo para uma simples e rápida ida ao banheiro. A solução é urinar dentro de uma garrafa mesmo.
A esposa de Ricky, Abbie (Debbie Honeywood), também batalha muito como cuidadora de idosos e ajuda o marido a manter a casa e a sustentar os filhos adolescentes Sebastian (Rhys Stone) e Liza (Katie Proctor). Esse casal praticamente sem sexo beira o colapso. Em certo momento, Abbie desabafa: “Parece que quanto mais trabalhamos, mais entramos em um buraco enorme”.
Expandindo a interpretação dentro do contexto apresentado pela narrativa, o título em português pode significar tanto o recado deixado para um cliente que não estava presente para receber a entrega; quanto uma advertência ao trabalhador que faltou para resolver questões pessoais importantes mediante a negativa de uma dispensa legal; ou, então, a ausência dos pais na vida dos filhos pelo fato de trabalharem demais.
Com a pouca permanência dos pais em casa, o filho adolescente começa a deslizar para a marginalidade, passando a ter, inclusive, problemas com a polícia. Esse é o ponto mais frágil do roteiro. O tratamento dado a essa rebeldia do filho, que chega a comprometer consideravelmente toda a estrutura familiar, soa artificial, forçado. Por mais que os pais estejam trabalhando muito, sempre buscam dar carinho aos filhos e mergulham em suas obrigações profissionais justamente para dar melhores condições a eles, algo que fica evidente.
Feita essa ressalva, no entanto, o filme é todo denúncia de uma sociedade que, baseada no trabalho informal, na terceirização, na meritocracia e na transformação das pessoas em máquinas ou objetos com o único objetivo do lucro, tende a multiplicar mazelas psicológicas. A forma como Ricky é tratado por seu supervisor quando vai pedir uma semana de folga para resolver delicados problemas pessoais é de uma frieza desconcertante. E revoltante.
As consequências dessa fragilização nas relações de trabalho, com profundos reflexos na vida pessoal e familiar, geram uma espiral ascendente de indignação e revolta, que é poderosamente compartilhada com os espectadores. Difícil chegar ao fim do filme sem sentir-se sensibilizado com a trajetória dos personagens.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.