Alguém já viveu a experiência de ter feito algo que depois considerou que jamais deveria ter feito? Pois é essa a sensação que o espectador é convidado a ter durante o filme dinamarquês Rainha de Copas (2019) ao acompanhar a protagonista Anne (Trine Dyrholm).
Anne é uma advogada especializada em direito de crianças e adolescentes que vive com seu marido Peter (Magnus Krepper) e suas duas filhas gêmeas em um lar aparentemente calmo. A calma só é levemente abalada, às vezes, com o desconforto de Peter ao ver que a esposa rompe as fronteiras entre a vida privada e o ambiente de trabalho quando traz para dentro de casa pessoas em situação de risco.
Essa calma tende a ser gradualmente comprometida quando quem passa a ocupar o espaço familiar é Gustav (Gustav Lindh), filho do primeiro casamento de Peter. Se antes o marido implicava com a atitude da esposa ao atender crianças e adolescentes problemáticos em casa, agora é o próprio filho problemático dele que chega para estremecer as estruturas. Gustav foi expulso da escola, tem problemas com a lei e foi enviado aos cuidados do pai pela mãe, já cansada da convivência difícil com o filho.
O título original, Dronningen, significa “rainha” em dinamarquês. A adaptação do título para o português concede um ingrediente a mais no caldo: a ironia. A rainha de copas, no tarô, simboliza o domínio das emoções, o controle e o equilíbrio.
Inicialmente, Anne não encontra problemas para integrar Gustav à família, graças à natureza do seu trabalho. No entanto (se não fosse esse “no entanto” não haveria história para contar, pelo menos não uma boa história), Anne passa a envolver-se sexualmente com o enteado.
É aí que o roteiro tende a provocar uma enxurrada de julgamentos por parte do público. Mas se os julgamentos nascem fáceis, as sentenças são difíceis. Isso porque os personagens trabalhados pela diretora May el-Toukhy não são unidimensionais. A complexidade que emana dos protagonistas imita a vida real.
O título original, Dronningen, significa “rainha” em dinamarquês. A adaptação do título para o português concede um ingrediente a mais no caldo: a ironia. A rainha de copas, no tarô, simboliza o domínio das emoções, o controle e o equilíbrio.
Rainha de Copas segue a tradição de várias produções do cinema dinamarquês que investem no enfoque de temas morais, principalmente em questões de ordem sexual. Bons exemplos disso são Anticristo (2009), de Lars von Trier, e A Caça (2012), de Thomas Vinterberg.
O que há de comum entre essas obras (além da fotografia com predominância de tonalidades cinzas e escuras e a discussão da moral sexual) é o tom cuidadoso na elaboração de roteiro e personagens. Existe empenho em entregar para o público um trabalho bem feito. Em razão disso e pelo bom enlace das situações e dos envolvidos, as sentenças tendem a ser difíceis.
Não raras vezes, as produções dinamarquesas alimentam a tendência de levar o espectador a solidarizar-se, a ter empatia com o personagem que, tradicionalmente, seria visto como um(a) criminoso(a). Que assim continue. Como escreveu o crítico Ticiano Osório: “Há algo de podre no reino da Dinamarca. E isso é bom para nós”.
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