Das conclusões assustadoras da vida, uma delas está intimamente relacionada com um dos principais braços culturais em âmbito mundial: o cinema. O termo “Sétima Arte”, utilizado para designá-lo, tem origem no Manifesto das Sete Artes e Estética da Sétima Arte, criado em 1912, mas publicado apenas em 1923, pelo intelectual italiano Ricciotto Canudo. Até aquele momento, pouco ou quase nada se falava sobre igualdade de gêneros, e isso se refletia obviamente no cinema. Apesar do movimento feminista já ter se organizado no século 19, é no século 20 que ele passa a assumir contornos diversos, a partir de movimentos como as sufragistas, sobretudo na Grã-Bretanha.
No caso do cinema, a situação é realmente assustadora. No Brasil, a primeira cineasta – Cléo de Verberena, com o filme O Mistério do Dominó Preto – tivera que esperar a década de 1930. Já na seguinte, Gilda de Abreu (O Ébrio, 1946; Pinguinho de Gente, 1947; Coração Materno, 1949) e Carmen Santos (Inconfidência Mineira, 1948) deram mais um passo na obtenção de espaço no cinema. De lá para cá, em especial a partir dos anos 1970 e 1980, começamos a acompanhar o surgimento de inúmeras cineastas, mas claro, sempre em menor número que os homens. Isso levanta a questão: afinal, qual o papel feminino na produção de cinema e como ela é representada por ele?
2015 foi um ano de divulgação de inúmeras pesquisas justamente acerca disto. A pesquisadora Stacy L. Smith, coordenadora de um grupo de pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia, identificou em um levantamento feito em 700 filmes com expressiva bilheteria nos Estados Unidos entre os anos de 2007 e 2014 (veja aqui) que em apenas 30,2% deles as mulheres possuem falas. E não precisa fazer muito esforço para notar o óbvio: o cinema continua sendo um homem, branco, heterossexual e cristão. A pesquisa de Stacy ainda identificou que apenas 28 dos filmes de sucesso haviam sido dirigidos por mulheres, sendo que apenas 3 eram negras.
O cinema por trás das câmeras
Em matéria divulgada na última segunda (09), a Folha de São Paulo (leia aqui) mostrou que, no caso do Brasil, apenas 16,5% dos filmes, desde a retomada do cinema nacional, foram dirigidos por mulheres. A título de curiosidade, foram 1211 filmes lançados desde então, ou seja, a direção não coube às mulheres nem 200 vezes, míseros 4% dos filmes (excluídas as codireções com homens).
É certo que houve avanços na luta feminista nos últimos 30 anos, porém, muito pouco a ponto de criar uma representação fiel da sociedade na qual vivemos. Para Marisa Merlo, produtora do Olhar de Cinema – Curitiba International Film Festival e sócia da produtora Grafo Audiovisual, isso é reflexo direto da sociedade. “Quando mulheres conquistaram mais presença no cinema, a linguagem cinematográfica já estava consolidada por roteiristas, diretores, críticos e teóricos homens, brancos, oriundos de uma classe social confortável”, comenta. E a opinião de Marisa se sustenta por dados encontrados na mesma matéria anteriormente citada do jornal Folha de São Paulo.
Segundo levantamento do jornal, em 2014, tivemos a pior média dos últimos dez anos no número de salas de cinema exibindo filmes dirigidos por mulheres: apenas uma de cada dez obras era assinada exclusivamente por mulheres. “A maioria dos filmes são escritos e dirigidos por homens, os projetos passam por editais e festivais nos quais a seleção é feita, em sua maioria, por homens, o filme é analisado e torna-se objeto de estudo em grupos compostos majoritariamente por homens, críticos e acadêmicos”, afirma Marisa. “O número de mulheres no cinema tem aumentado, mas ainda há uma desproporção muito grande. Ainda há pouca participação de mulheres na cadeia intelectual do cinema, poucas mulheres falando de si mesmas, colocando sua opinião, sua linguagem”, complementou a produtora.
“Assuntos de mulheres”
“Por que raios produzir um filme sobre uma grávida? Que assunto mais desinteressante”. Foi assim que Petra Costa, diretora do longa Olmo e a Gaivota, foi questionada por um distribuidor. A importância de trazer temáticas que fujam ao monotema ainda encontra resistência. Parte disso se deve a diferenciação de pesos entre o que são considerados “assuntos de mulheres” e o que seriam “assuntos de homens”. “Uma mulher que passa a vida toda sob a pressão desse pensamento (de que temas femininos tenham menos importância) pode simplesmente se sentir insegura de escrever um roteiro, de dirigir um filme, de se expressar artisticamente, de ser crítica de cinema”, afirmou Marisa Merlo.
Dificilmente a representação feminina nas telas do cinema foge ao estereótipo da mulher frágil, dona de casa, que dedica sua vida à família. Perpetua-se, ainda, os padrões de beleza que a indústria da moda criou e nós, todos, acatamos: mulheres brancas e de corpos esculturais. “Ainda hoje, a maioria das personagens, protagonistas ou não, em filmes nacionais tem de resolver problemas ligados à esfera do matrimônio ou da maternidade”, é o que afirma Marcella Grecco, mestra em Multimeios pela Unicamp, que pesquisa as representações do feminino no cinema brasileiro de ficção.
Campanhas como a #AgoraÉQueSãoElas passam a ser fundamentais no levantamento do debate acerca do feminismo em sociedades que acreditam na importância da igualdade de gêneros como elemento fundamental na luta pelos direitos humanos. “Tais representações influenciam o modo de agir, de se portar e de sentir de mulheres em todo o mundo, por isso é essencial estimular uma democratização das mídias de forma a fazer sair essas representações do estereotipismo que as tem marcado ao longo de suas histórias”, completou Marcella.
O cinema na desconstrução do machismo
Se o leitor se pergunta sobre as razões de trazermos à luz o debate sobre a presença feminina na cadeia produtiva do cinema, é fundamental que seja compreendida sua importância como ferramenta na desconstrução do machismo em nossa sociedade. O cinema é, tal qual qualquer expressão artístico-cultural, um elemento chave na educação, agindo como um dos eixos do processo comunicacional.
“Toda forma de expressão artística tem esse poder, mas a desconstrução do machismo deve ser protagonizada por mulheres”, pontua Marisa Merlo. “Ter uma produção com conteúdo menos machista é ótimo, mas não resolve se a maior parte dos filmes ainda continuarem sendo escritos, dirigidos, estudados e premiados por uma maioria desproporcional de homens”, conclui.
Para o epistemólogo suiço Jean Piaget, o pensamento origina-se da ação, e temos na sociedade um sistema de atividades onde as ações se modificam umas às outras alcançando formas de equilíbrio. Nesta perspectiva, o conceito de aprendizagem aqui considerado não entende que o sujeito aprende porque alguém ensina, mas sim, “que o aprender é um processo de construção, reconstrução e de tomada de consciência do próprio desenvolvimento por parte do sujeito”, como aponta a pesquisadora portuguesa Celina Rodrigues.
Pensamento semelhante tem Marcella Grecco. “Precisamos ficar atentos aos discursos produzidos por esses meios e lutar para garantir maior pluralidade nos discursos que eles engendram concedendo, por exemplo, espaço a grupos que até então tiveram pouca ou nenhuma oportunidade de falar de si e de criar suas próprias representações, são formas de caminhar em direção a uma maior democratização de nossa sociedade”.
Você pode ler a conversa com Marcella Grecco (leia aqui) e Marisa Merlo (leia aqui) na íntegra em nosso Medium. Não deixe de conferir.
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