O cinema brasileiro ficou mais silencioso. Vladimir Carvalho, cuja lente sempre explorou a vida sem adornos, partiu em Brasília no dia 24 de outubro, aos 89 anos, após ficar internado por três semanas devido a problemas renais. Munido de uma câmera, ele desvelou o Brasil para os brasileiros.
Nascido em Itabaiana, Paraíba, Vladimir, desde cedo, soube que as histórias dos esquecidos precisavam de um palco, de uma lente que enxergasse além do óbvio. Ao longo de uma trajetória de mais de cinco décadas, ele fez do documentário seu manifesto e sua poesia. Suas câmeras, mais do que registrarem cenas, investigavam a alma de um país pulsante e complexo, captando seu fervor e suas contradições.
Carvalho começou sua carreira no final dos anos 1960, inspirado pelas dificuldades de seu Nordeste natal e movido pela urgência de registrar as realidades escondidas do país. Era um cineasta da observação: seu estilo, longe de ser neutro, mesclava a linguagem documental com um lirismo quase artesanal, como se suas lentes fossem também as lentes da terra e da história.
Com O País de São Saruê (1971), ele trouxe o sertão nordestino como protagonista, não em estereótipos, mas em sua dureza e resiliência. A censura militar viu na obra uma ameaça, e o filme foi proibido, mas seu impacto se intensificou – a obra acabou sendo exibida em 1979 no Festival de Brasília. Ali nascia o “cineasta da resistência”, aquele que filmava o Brasil que muitos evitavam.
Era um cineasta da observação: seu estilo, longe de ser neutro, mesclava a linguagem documental com um lirismo quase artesanal.
Com Conterrâneos Velhos de Guerra (1991), Carvalho não apenas tornou a surpreender crítica e público, como reafirmou sua obsessão pela capital do país, especialmente pela realidade dos candangos, operários responsáveis pela construção de Brasília às margens da glória oficial. O cineasta posiciona sua lente para o obscuro episódio de chacina de operários ocorrida no acampamento de uma das empreiteiras responsáveis por erguer o sonho de Lúcio Costa, Niemeyer e Joaquim Cardozo – além de Kubitschek. O resultado foi a consagração no Festival de Brasília, inclusive com o prêmio de melhor filme em sua categoria.
Outro marco de sua filmografia veio com Barra 68 – Sem Perder a Ternura (2000), que resgatou o movimento estudantil e a repressão da ditadura na Universidade de Brasília. Com entrevistas cruas e imagens de arquivo, Carvalho revelou as lutas e angústias de uma geração. Ele fazia da montagem uma espécie de narrativa vivida, onde cada cena e depoimento guiavam o espectador a uma verdade palpável, livre de filtros. Seu olhar sensível trouxe também Rock Brasília: Era de Ouro (2011), que capturou a juventude vibrante da capital e suas utopias no cenário musical dos anos 1980, quando o rock ecoava o desejo de mudança.
O legado de Vladimir Carvalho ao cinema brasileiro é uma mescla rara de coragem, poesia e compromisso com o real. Sua obra documenta uma história que insiste em ser contada: a do povo que resiste, que canta, que protesta. Ao longo de sua trajetória, o documentarista reinventou o modo de narrar o Brasil, criando uma filmografia que vai além do cinema, aproximando-se da literatura, da arte, da denúncia.
Amigos sempre descreveram Carvalho como um homem de sorriso fácil e olhos atentos, sempre interessado na humanidade das histórias. Embora seu olhar tenha se calado, ele permanece vivo nas imagens que nos deixou, revelando o Brasil que ele tanto amou – em sua crueza, em sua beleza, em sua dor.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.