Devorar (2019), longa-metragem de estreia do cineasta Carlo Mirabella-Davis, acompanha uma mulher que, durante uma rotina solitária e isolada em casa, passa a devorar pequenos objetos de diversos tipos e texturas. Bolas de gude, alfinetes e pilhas são ingeridas pela personagem, vivida por Haley Bennett. Na ação impulsiva e destrutiva, ela diz buscar algum controle sobre a própria vida.
Embora seja evidentemente um filme de horror (cujo monstro é o hábito incontrolável da protagonista, que – para piorar – está grávida), o enredo é apresentado como um denso drama sobre o isolamento social. Trata-se de uma das muitas narrativas do gênero que usam da solidão como ponto de partida para um pesadelo de irracionalidade.
Não deixa de ser curioso consumir esse tipo de história dentro do contexto em que parte da sociedade vive atualmente. Desde março deste ano, a pandemia do coronavírus fez com que muitos de nós adotassem a quarentena como regra. Trancamos as portas das nossas casas pelo lado de dentro. Ficamos mais introspectivos e suscetíveis aos nossos próprios impulsos.
Não somos preparados para viver em quarentena. O estranhamento com o isolamento parecia era um fato tão estranho na década passada que filmes do gênero tinham como estereótipo recorrente o sujeito que enlouquece vivendo sozinho.
Uma pessoa pode enlouquecer numa situação dessas. Não são poucos os títulos de horror que nos mostram isso. O Iluminado (1980), O Farol (2019) e Ao Cair da Noite (2017) trabalham com a ideia de que a solidão pode levar o ser humano ao delírio. Sem o convívio social, perdemos os filtros que nos protegem e damos voz à nossa própria subjetividade, que floresce – nem sempre com coisas boas.
Não somos preparados para viver em quarentena. O estranhamento com o isolamento parecia era um fato tão estranho na década passada, que filmes do gênero tinham como estereótipo recorrente o sujeito que enlouquece vivendo sozinho. Sunshine – Alerta Solar (2007), Pandorum (2007) e Predadores (2010) são exemplos de produções que usam um antagonista que ficou louco após perder o contato com outros seres humanos.
Em um mundo com muito contato digital, nossa experiência vivendo esse isolamento na pele não parece tão grave. Talvez por isso o horror corporal de Devorar seja tão assustador. Existe ali uma personagem que recorre ao irracional para se sentir viva. Ao engolir objetos cortantes, ela se sente capaz de enfrentar a solidão – pelo menos até que o marido chegue em casa. A trama serve de alerta para cuidarmos de nossos próprios impulsos durante a pandemia. Alguns deles podem ser bem destrutivos.