Quando tinha 16 anos, João Pedro Fleck começou a organizar excursões para Montevidéo para ver o Festival da Cinemateca Uruguaia. A ideia era ter contato com uma programação de filmes mais voltados para a formação de olhar cinematográfico, algo que ele não encontrava ali por Porto Alegre. A viagem virou uma tradição entre seus conhecidos, dentro os quais, Nicolas Tonsho, um amigo da faculdade.
Juntos, Fleck e Tonsho e outros dois colegas acharam que poderiam organizar uma mostra como aquela na capital gaúcha. Como gostavam muito de cinema de gênero, decidiram que o evento seria voltado para as narrativas de horror, ficção científica e fantasia. Assim, em 2005 surgia o Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa).
Hoje, o Fantaspoa é o maior festival do tipo na América Latina. Em sua 15ª edição, que este ano ocorre entre 16 de maio e 2 de junho, a programação terá mais de 100 filmes, representando 25 países. O lendário cineasta Roger Corman será um dos convidados de honra de 2019.
Além de fazer a curadoria dos filmes que serão exibidos, os organizadores também passaram a atuar na produção de projetos que nasceram ali mesmo nas portas das sessões do Fantaspoa. Em entrevista à Escotilha, Fleck conta um pouco sobre a história do evento, os feitos que a mostra alcançou nos últimos 15 anos e seu papel como produtor cinematográfico.
Imagino que devem te perguntar isso com frequência, mas como começou o Fantaspoa?
Conheci o Nicolas há 16 anos. Nós dois éramos bem novos. Eu fazia as excursões para Montevidéo, no Festival da Cinemateca, e fomos com alguns amigos. Lá, começamos a discutir como seria legal ter um festival de cinema em Porto Alegre. Na época não existia nenhum nos moldes que a gente quisesse assistir. Pensamos em como fazer um festival nosso de cinema fantástico, que era uma coisa que a gente gostava.
Quando participamos de um projeto é quase como se fosse um investimento às cegas num projeto porque confiamos nas pessoas que estão realizando.
E foi difícil?
Bah, não tínhamos ideia de como fazer isso. Começamos pensando em filmes que pudéssemos exibir. Fizemos contato com umas instituições que eu conhecia aqui no Brasil para passar obras que não eram de domínio popular. A gente pegava o que estava acessível e o que dava para exibir pelo valor que podíamos pagar, que era quase nada.
Quanto tempo levou para o festival virar o que é hoje?
Lá pelo quarto ano veio a grande reviravolta do Fantaspoa. Não tínhamos como continuar do jeito que estávamos. Não queríamos nos esforçar tanto para fazer um festival sem grande impacto nacional e, principalmente, internacional. Então, decidimos tornar o festival competitivo. Aí mudou completamente nossa história porque o ponto principal de mostrar filmes inéditos é que nenhum desses filmes teria legendas…
Daí surge a empresa de vocês de legendagem…
Exatamente. Ou a gente desistia ou ia aprender a fazer as legendas por conta própria. Logo na primeira vez, lembro que consegui uns filmes espanhóis que a taxa de exibição custava o orçamento do festival inteiro. Aí entrei em contato com o diretor do Instituto Cervantes, em São Paulo, que tinha interesse em exibir os filmes também. Propus legendar os filmes em um tempo que não fechava duas semanas. Isso significa que a gente tinha que fechar uma média de um longa-metragem por dia sem nunca ter feito legendagem. O problema é que eu recebi os filmes e descubro que um deles era em espanhol arcaico, filmado em 1937 [risos].
E aí?
Tive que treinar meu ouvido de tal maneira em 24 horas que se tu perguntar qual foi a coisa mais difícil que eu fiz na minha vida inteira, eu diria que foi isso. Coisa de reality show [risos].
Mas deu certo?
Deu super-certo. O festival cresceu absurdamente depois disso. Numa velocidade que não imaginávamos que iria acontecer. A partir do quinto ano, as pessoas passaram a nos procurar para exibir seus filmes.
Eu acompanhava bem de longe nessa época, mas lembro da repercussão nos blogs da sessão surpresa de Fanboys, em 2009…
Fanboys estava sendo muito elogiado nos festivais em que era exibido, mas alguém botou uma cópia em alta qualidade na internet. Isso detonou a carreira do filme. Acabei conseguindo uma cópia do filme e pedi autorização para o diretor para exibir. Como foi uma sessão surpresa, não teve que passar por agente de vendas e distribuição, que quase certamente não deixaria que a sessão acontecesse.
Acho que o Fantaspoa tem um papel fundamental na formação de uma rede de contato entre realizadores de horror no Brasil. Qual a sua percepção disso?
Eu iria mais longe e diria que o principal papel do Fantaspoa é construir essa rede internacionalmente. Inúmeras produções começaram aqui no Fantaspoa pelo contato entre diretores, técnicos e produtores. No ano passado, criamos um grupo de Whatsapp com realizadores da América Latina em que foram trocadas milhares de mensagens e as pessoas já começaram a trabalhar juntas umas nos projetos das outras.
Como você e o Nicolas passaram de organizadores do Fantaspoa a produtores de cinema?
Foi tudo meio concomitante. Com a empresa de legendagem, começamos a exibir filmes mais novos. Uns dois anos depois começamos a ter orçamento e patrocinadores. Com isso, conseguimos trazer convidados, que passaram a se envolver bem com o festival e conosco. Em 2013, conhecemos dois irmãos argentinos que tinham feito um filme de mil dólares. Eles ganharam um prêmio no Fantaspoa e a gente se deu muito bem. Amor mútuo à primeira vista. Acabou de perguntarmos se eles entregariam um filme no ano seguinte se déssemos o dobro do orçamento. Quatro meses depois, eles nos ligam dizendo que tinham o roteiro pronto.
E assim nasceu Jorge e Alberto contra os Demônios Neoliberais?
Isso. Eu e o Nicolas conversamos e demos dois mil dólares para os guris. E te digo que o custo foi incomparável com o que o filme alcançou. Passou em uns 15 festivais de cinema do mundo inteiro. E é um filme muito divertido.
O que vocês procuram nos filmes que produzem?
Afinidade com quem a gente tá trabalhando. Muitas vezes vem um pessoal desconhecido que quer que a gente financie um filme com uma ideia ótima, mas não nos envolvemos. Quando participamos de um projeto é quase como se fosse um investimento às cegas num projeto porque confiamos nas pessoas que estão realizando. É por isso que estamos trabalhando novamente com o [cineasta] Kapel [Furman] e o pessoal da Infravermelho Filmes.
Por falar nisso, Skull – A Máscara de Anhangá é um projeto que nasceu logo na primeira edição do Fantasmercado [evento do Fantaspoa voltado para promover a produção de cinema de gênero]…
Uma coisa que fomos desenvolvendo bem nesses 15 anos é como responder ao mercado. Na América Latina como um todo começou uma demanda grande para que os festivais não tivessem apenas exibição de filmes, mas um incentivo à realização de coproduções. O edital do BRDE que ganhamos no ano passado incentivava isso também.
E você fez a ponte entre o projeto da Infravermelho e a Cinestate nos Estados Unidos?
[O Skull] foi uma coincidência. O dono da Cinestate, Dallas Sonnier, comprou a Fangoria e estava procurando projetos. Como gostei da apresentação do Kapel, liguei para o Dallas nos Estados Unidos e perguntei se tinha interesse em investir num projeto no Brasil. Ele viu as apresentações e adorou a ideia. Foi uma loucura total porque, por mais que ele tenha gostado dos guris e de mim, foi um investimento às cegas. Tomara que dê tudo certo.
O próximo Fantaspoa já está garantido?
Nada está garantido, na minha opinião. Sou um cara realista e tenho 15 anos de estrada. Dos dois cinemas que utilizamos, um é da prefeitura e o outro da universidade. Com a situação do ensino atualmente, não tenho certeza de que o cinema universitário estará aberto no ano que vem. É esse o nível de preocupação que as pessoas têm que ter. Há um desmantelamento da cultural em geral neste país
Uma última pergunta: como está a expectativa para a presença do Roger Corman neste ano?
Com a programação fechada, eu e o Nicolas começamos a analisar a possibilidade de trazer um convidado de primeiríssima linha. Já tínhamos confirmado a presença do Larry Wilson e da Christina Lindberg, que são dois nomes muito importantes para nós. Mas pense na importância de um cara que tem mais de 90 anos, dirigiu 50 filmes e produziu outros 415. Ele não é só um sujeito importante para o cinema de gênero, mas para o cinema. Vamos supor que o Fantaspoa acabe em 2019, acho que esse seria um término incrível para a história do festival.