O cineasta paranaense Paulo Biscaia Filho tem muito a comemorar em 2017. Enquanto a Vigor Mortis, sua multimidiática companhia de teatro, vídeo e quadrinhos completa 20 anos, ele celebra o sucesso de público de seus três últimos espetáculos. Dois deles, A Macabra Biblioteca de Luchetti e Acordei Cedo no Dia em que Morri, são claras homenagens a nomes importantes do cinema de horror, como o roteirista e escritor Rubens Francisco Luchetti e o cineasta marginal Ed Wood.
As comemorações deste ano também incluem a quarta edição da mostra Grotesc-O-Vision (saiba mais), especializada em cinema fantástico e de horror, que será realizada em Curitiba entre os dias 30 de outubro e 2 de novembro. A programação é especial para Biscaia Filho porque, além da exibição de filmes independentes e de uma série de palestras e oficinas, o evento também marca a estreia do longa-metragem Virgin Cheerleaders In Chains (2017), que dirigiu ao lado do cineasta independente (e professor de literatura inglesa aposentado) Gary Gannaway nos Estados Unidos.
Em uma entrevista exclusiva para a Escotilha, o diretor paranaense discute a programação da mostra, suas produções deste ano, o gênero de horror e os planos para o futuro.
Escotilha » Como estão os preparativos para a Grotesc-O-Vision deste ano?
Paulo Biscaia Filho » Estamos extremamente animados. Não conseguimos fazer a Grotesc-O-Vision em 2016, mas em 2017 a gente está com filmes super-legais. Teve uma safra muito boa de inscritos de curtas-metragens. Trouxemos filmes de distribuidoras maiores e internacionais. Também será a primeira exibição no Brasil de Virgin Cheerleaders In Chains e estamos bastante ansiosos.
O que você leva em conta na hora de montar a programação da mostra?
Tento pegar filmes que se equilibrem entre qualidade de um filme de gênero de horror e uma particularidade que respeite o nome da mostra Grotesc-O-Vision. A palavra “grotesco” tem bastante influência na maneira como selecionamos os filmes. Na noite de abertura, a produção exibida, A Noite do Virgem (2017), é bastante bizarra, pois é uma experiência sensorial de violência e sexo produzida na Espanha. Faz jus estar na programação de uma mostra que tenha o nome “grotesco”. Também queremos filmes que sejam divertidos para o público e que dificilmente sejam exibidos em outro canal no Brasil que não seja esse tipo de mostra.
Como você comentou, um dos grandes destaques do evento será a exibição em primeira mão de Virgin Cheerleaders In Chains, produção independente norte-americana que ajudou a dirigir. Como foi essa experiência?
Minha participação como cocriador do Virgin Cheerleaders In Chains é só motivo de orgulho. É uma grande experiência colaborar com uma equipe fantástica que espelha bastante os próprios personagens do filme – que formam uma equipe de filmagens com verba bastante limitada, mas que tocam um projeto [fictício] com extrema paixão. Adoro trabalhar nesse tipo de projeto, em que todo mundo compra a proposta.
Vamos ter gente da equipe de produção dos Estados Unidos aqui?
[O produtor] Gary Gannaway, o grande mentor do projeto, é um dos pontos altos do Grotesc-O-Vision este ano. Ele é um professor aposentado de literatura que resolveu escrever um roteiro de cinema e produzir um filme. Isso é algo a ser extremamente respeitado. A atriz Elizabeth Maxwell vem para cá também. Ela é uma das protagonistas do filme e uma atriz com uma larga experiência, inclusive como voz oficial de diversos animês nos Estados Unidos [como a dublagem norte-americana de Ataque dos Titãs].
O filme ficou legal?
Sou suspeito para falar, mas o filme ficou bem legal.
E sentiu muita diferença em dirigir um texto que você não escreveu?
É o primeiro que dirijo, mas não roteirizo. Mesmo assim, o Gary brincava que teria que me creditar como corroteirista, porque fiz várias interferências no roteiro para ter uma maior fluidez narrativa. Não era bem uma questão de correteirizar, mas de dar direção ao texto. Isso é absolutamente normal. É muito libertador trabalhar com o roteiro que eu não escrevi. A gente consegue ter um olhar diferente, dialogar e saber que está contribuindo e encontrando novos lugares e novas poéticas. Para ser bem sincero, ando enjoado do meu próprio texto e é um alívio poder trabalhar com o de outra pessoa. O Gary é um excelente redator de diálogos.
Acho legal que se discuta o pós-horror por falar de horror e por levar as pessoas a perceber que o gênero deve ser levado a sério.
É mais fácil fazer filmes lá fora?
Não. É até mais difícil do que fazer no Brasil. Não existem linhas de governo para dar apoio, você depende de investidores privados para quem você deve prestar contas depois. A parte legal é que há uma cultura cinematográfica, o que dá certa liberdade para um produtor independente como o Gary. Aqui, todo mundo espera os editais. Também tem uma indústria muito forte lá e os profissionais são ótimos. O nível de qualidade do filme, para o teor da produção, é muito bom.
Quais são os próximos passos para o filme? Tentar uma distribuição comercial?
No Brasil, o filme está nas mãos da produtora Diana Moro, da Moro Filmes. Vamos tentar fazer um lançamento comercial por aqui. Enquanto isso, o Gary tá fazendo as vendas internacionais. Nossa intenção é fazer o filme rodar o mundo, não só em festivais, mas principalmente em circuito comercial.
Embora suas histórias sempre sejam ambientadas em um lugar mais ou menos neutro, sempre tenho a impressão de que são tramas que poderiam, muito bem, se passar em Curitiba. Como a cidade influencia sua produção?
As minhas tramas são em lugares neutros justamente porque Curitiba é um lugar neutro. Curitiba é essa “não cidade”. Acho que essa é a primeira forma como Curitiba me influencia nas narrativas. É um lugar sem uma característica própria. É nada e tudo ao mesmo tempo. Pode ser europeia, brasileira ou norte-americana. Curitiba foi até Los Angeles. A primeira peça em que assumi Curitiba como cenário foi A Macabra Biblioteca de Luchetti, neste ano. Escrevi uma frase em que a Vampira diz que Curitiba é o melhor lugar para vampiros, pois falta sol e sobram canalhas.
Levar seus filmes e espetáculos para fora da capital paranaense mostra algum tipo de relação diferente com o público?
Levar os meus trabalhos para fora de Curitiba é sempre uma experiência incógnita. Nunca sei exatamente como as pessoas vão reagir, mas costumam reagir bem. Levamos A Macabra Biblioteca de Luchetti para São Paulo e as pessoas gostaram bastante. A peça tinha tradução em libras e, quando a temporada acabou, as tradutoras disseram que iriam sentir falta porque era gostoso fazer a tradução. A gente nunca sabe como nosso olhar, de um lugar neutro e esquisito, vai ser recebido pelas pessoas. Adorei isso. Vou levar para sempre.
O que seríamos de nós sem os nossos mestres e mentores? Acho que não tem como não fazer re-interpretações dessas nossas guias estéticas. Ainda estou aprendendo a contar histórias.
Sua obra, no teatro e no cinema, parece sempre reconhecer elementos consagrados da literatura, dos quadrinhos, do cinema e da televisão. A lista inclui Edgar Allan Poe, Julio Verne e Stuart Gordon. Mais recentemente, Rubens Francisco Lucchetti e Ed Wood. Como você vê essas inspirações para o seu trabalho?
O que seríamos de nós sem os nossos mestres e mentores? Acho que não tem como não fazer re-interpretações dessas nossas guias estéticas. Ainda estou aprendendo a contar histórias. Por isso, empresto o apoio dessas pessoas para, de pouco em pouco, poder caminhar com as minhas próprias pernas. Se é que um dia conseguirei fazer isso. Também é gostoso poder explorar o universo desses autores porque eles são maravilhosos.
Quais artistas você ainda não teve oportunidade de trabalhar, mas adoraria dialogar nos seus próximos trabalhos?
Tem uma lista grande: os trabalhos noir de Raymond Chandler; o livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; o cinema de William Castle; e muito mais. Outros autores sempre vão aparecendo de alguma forma. A peça do Luchetti tinha muito de Jacques Tourneur, e Herschell Gordon Lewis é homenageado no Virgin Cheerleaders In Chains.
Você pesquisa e, sempre que parece ter oportunidade, discute o estilo de produção do teatro Grand Guignol. Como esse espaço ainda influencia seu trabalho?
O Grand Guignol é o grande norte da companhia Vigor Mortis. É o que criou a minha dissertação de mestrado e está, sempre, como um grande guarda-chuva sobre nossas produções. Em Acordei Cedo no Dia em que Morri, não queriam que saísse sangue da cabeça do alienígena, mas eu disse que se não tiver sangue, as pessoas vão reclamar. É a mesma coisa do que ir a um show de uma banda e não ouvir o hit principal. Essa profusão de sangue vem do Grand Guignol, que também influencia no timing, no corpo dos atores e na dramaturgia das nossas produções.
Uma pergunta mais teórica, mas importante: o que é o horror para você?
É um lugar de fábula, em que a gente usa uma fantasia na forma de pesadelo, mesmo que seja bem-humorado, para falar de outras coisas. Acho um formato eficiente de discutir assuntos políticos, sociais e de relacionamentos humanos. Os monstros do horror são representações dos nossos medos e da forma como olhamos para o mundo. Essa representação fabulesca e fantasiosa é arte. O Cacá de Carvalho dizia que arte é o ato de dizer sem dizer o que estamos dizendo. O horror, para mim, é esse lugar de máscara.
Por que você acha que as pessoas são atraídas pelo horror?
Porque lida com o proibido, com o olhar da fechadura. Sabemos que não devemos fazer, mas fazemos mesmo assim. É como morder a maçã do Éden. É experimentar o risco de forma segura. Embora não pareça, temos uma vida bem mais segura do que já tivemos. Não temos mamutes prontos para nos pisotear e não estamos em guerra constantemente. Nosso instinto nos leva a correr riscos. O horror é uma forma de experimentar isso. Obviamente, também gostamos da fábula e do mistério que o envolve.
Qual a sua opinião sobre o pós-horror?
Ainda não tenho uma opinião formada sobre o tema. Acho legal que se discuta o pós-horror por falar de horror e por levar as pessoas a perceber que o gênero deve ser levado a sério. Não é uma coisa de fim de semana. Isso é o mais importante do que o que o rótulo possa significar.
Curitiba é essa “não cidade”. Acho que essa é a primeira forma como Curitiba me influencia nas narrativas. É um lugar sem uma característica própria. É nada e tudo ao mesmo tempo.
O gênero parece ter conquistado um espaço importante nos últimos anos com o público e o número de exemplares brasileiros só crescem. Há algum tipo de mudança na maneira como o público vem recebendo suas obras também?
Não sei dizer se é sobre o gênero ou se é resultado de 20 anos de trabalho (ou se são as duas coisas), mas neste ano nossos espetáculos foram muito bem recebidos com o público. Foram duas peças que lotaram direto. Não sei dizer de onde veio isso, mas a procura mais intensa, me deixou bastante feliz.
Quais são seus próximos projetos?
Depois da Grotesc-O-Vison, começo a pré-produção de alguns trabalhos. O único que está 85% certo se chama Zombie Walkers ou Outros Apocalipses, que é uma espécie de prelúdio-série para de Marlon Brando, Whiskey, Zumbis e Outros Apocalipses. É uma peça teatral dividida em quatro espetáculos diferentes. A primeira parte se passa na zombie walk de 2018 [que ocorre durante o carnaval em Curitiba]. Quatro sobreviventes de uma invasão zumbi acabam se separando em dois grupos. Vamos acompanhar o que acontece com eles em duas peças que vão ocorrer simultaneamente depois. Cada uma em um abrigo diferente. Essa experiência vai render uma quarta peça, em que os dois grupos se reúnem.
E para o cinema?
Eu e a Diana estamos tentando fazer o levantamento de verba para o filme Marlon Brando, Whiskey, Zumbis e Outros Apocalipses, que terá Guilherme Weber como protagonista. Também tentamos levantar verba para filmar A Filha de Drácula, que é um roteiro escrito pelo Luchetti que ele mesmo pediu que eu dirigisse.