A britânica Milvina Dean tinha apenas dois meses quando foi colocada em um dos 20 botes que saíram do Titanic na noite do naufrágio. Ela saiu no colo da mãe, enquanto o pai morreu no navio. No fim da vida, a sobrevivente contou em entrevistas que passou suas primeiras décadas praticamente alheia à tragédia. Isso até o reaparecimento do interesse de Hollywood pelos fatos da noite de 14 de abril de 1912.
Num documentário chamado Beyond Titanic (1998), a inglesa se recorda de ir ao cinema com outros sobreviventes para uma sessão especial de Somente Deus Por Testemunha (1958), de Roy Baker, na época do lançamento. “Todos nós o detestamos [a produção] porque nossos pais afundaram com o navio”, diz ela na entrevista. A reprodução de um evento tão traumático como entretenimento era dolorosa demais. “Juramos nunca mais ver outro filme sobre Titanic.”
A década de 1950 marcou um dos muitos períodos de febre midiática por informações sobre o navio. Essa vinha da publicação do livro de Walter Lord, no qual a obra de Baker era baseada, de 1955; e também da primeira grande produção norte-americana sobre o tema, Titanic (1953), de Jean Negulesco e produzida pela Fox.
Curiosamente, Milvina nunca se incomodou com essa primeira incursão hollywoodiana pela tragédia. Também pudera, o filme de 1953 usa o transatlântico apenas como um cenário para um melodrama clássico repleto de estrelas da época, como Barbara Stanwick, Clifton Webb e Robert Wagner. O desastre, que vitimou 2.200 pessoas, é suavizado, sem os traços de desespero que marcariam a próxima versão.
Até então a mais cara produção cinematográfica do Reino Unido, Somente Deus Por Testemunha não tinha grandes astros, mas trazia uma equipe de pesquisa – destinada a reconstruir a estrutura física do navio, as principais histórias dos tripulantes e o próprio naufrágio. Era tão dedicada ao realismo, que a narrativa foi tratada como um docudrama, contando apenas histórias de sobreviventes que de fato existiram.
O horror do realismo da obra de Baker, porém, é melhor sentido no depoimento de Milvina Dean. Conformada que jamais deixariam de levar a história do transatlântico para as telas, a sobrevivente apenas se afastou dos lançamentos cinematográficos.
O produtor William MacQuitty, que viu o Titanic zarpar da Irlanda quando era apenas um menino, financiou a adaptação com objetivo de criar a obra definitiva sobre o tema. Algo que o nem a versão de Negulesco e muito menos a peça de propaganda nazista de 1943 haviam conseguido fazer. “O roteiro estava pronto, pesquisado por 20 anos por Lord”, diz ele em Beyond Titanic.
Há um velho debate entre historiadores e teóricos do cinema de que os filmes sobre o passado são um tipo de historiografia. Em A história nos filmes / Os filmes na história, o pesquisador Robert Rosenstone explica que mesmo os dramas históricos que ambicionam ser mais fidedignos aos fatos são, em alguma medida, imprecisas. Afinal, a narrativa precisa envolver o espectador, ter personagens cativantes e criar diálogos que nunca foram ditos. O mesmo pode acontecer com um livro de história. A diferença é que as imagens cinematográficas deixam uma impressão mais duradoura no imaginário e afetam a maneira das pessoas visualizarem o que ocorreu.
Somente Deus Por Testemunha é um filme que tem diversas inconsistências históricas documentadas. A maior delas talvez seja o fato de que o navio nunca se parte em dois nos minutos finais do naufrágio. Isso nunca impediu que o longa-metragem fosse uma importante e dura reconstituição da tragédia, a ponto de influenciar a maneira como enxergamos o fim do Titanic até hoje. É, por exemplo, uma óbvia referência visual e narrativa para James Cameron na seminal versão de 1997.
O horror do realismo da obra de Baker, porém, é melhor sentido no depoimento de Milvina Dean. Conformada que jamais deixariam de levar a história do transatlântico para as telas, a sobrevivente apenas se afastou dos lançamentos cinematográficos. Em 1997, foi convidada para diversas estreias internacionais da produção de Cameron. “Em uma delas teria a presença do Príncipe Charles”, disse no citado documentário. Ela gentilmente recusou.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.