Com uma vasta experiência no mercado cinematográfico brasileiro, o cineasta Kapel Furman é uma espécie de Tom Savini tupiniquim. Além de ser um pioneiro na elaboração de efeitos especiais práticos no cinema de horror pós-retomada – com passagens por títulos como O Cheiro do Ralo (2006), Encarnação do Demônio (2008) e O Nó do Diabo (2018) -, ele também é um realizador bastante prolífico e tem lá sua carreira de ator. “Não chamaria de carreira”, diz, entre risos.
O diretor terá um de seus curtas presentes na antologia Histórias Estranhas (2019), que estreia em maio no Brasil. Ao lado do colega Armando Fonseca, da Infravermelho Filmes – com quem dividiu a direção do longa A Percepção do Medo (2016) -, também trabalha na pós-produção de Skull – A Máscara de Anhangá, que será o primeiro filme brasileiro a ser lançado pelo selo de cinema da revista Fangoria, maior publicação voltada ao horror dos Estados Unidos.
Em entrevista exclusiva à Escotilha, Furman comenta sua trajetória como profissional de efeitos visuais práticos e sua atuação como diretor, roteirista e escritor. Leia abaixo:
Como foi seu começo no trabalho de efeitos especiais no Brasil?
Comecei como produtor de set na faculdade, em 1997, nas filmagens de Memórias Póstumas de Brás Cubas [lançado em 2001]. Em paralelo, fazia meus projetos de terror. Naquela época, o gênero nem era visto como cinema. Acabei fazendo efeitos especiais para os meus filmes. Em 2000, mostrei meu portfólio dos curtas para o produtor de Bellini e a Esfinge [lançado em 2001]. Aí ele curtiu, mas o que pegou mesmo foi que eu não tinha a mínima ideia do quanto cobrar e cobrei pelo filme inteiro o valor do que se cobrava por uma semana [risos].
Seu primeiro curta de horror foi profissional foi Amor Só de Mãe (2003)?
De horror, oficialmente sim. Apesar da retomada, o cinema de horror no Brasil demorou muito para começar a se estabelecer. Existiram cenas de sangue e efeitos especiais, mas em outros outros gêneros. Amor Só de Mãe foi o primeiro com orçamento real, em película e tudo mais.
E o filme até hoje continua impressionante, especialmente os efeitos visuais práticos…
Até porque, na época, os efeitos de pós-produção eram inacessíveis. Os efeitos especiais foram práticos por necessidade, o que acabou sendo um desafio bem bacana profissionalmente.
É uma idiotice inerente de todo o realizador [risos]. Ganho dinheiro fazendo uma coisa e gasto realizando os meus projetos. Sei que é estúpido, mas continuo por uma necessidade de me expressar. Realizar é uma vontade minha de testar linguagens, experimentar e ver as coisas que imagino ganhando vida na prática.
Vejo você e o Rodrigo Aragão como dois desbravadores no uso de efeitos especiais no cinema nacional…
Eu e o Rodrigo temos essa de realizar independentemente do valor. O que importa é como rodar a cena e não o quanto você tem. Quem usava efeito visual prático antes era a publicidade. Então você tem o [pioneiro Domingos] Utimura e outras pessoas muito fortes no campo publicitário. O movimento foi muito devagar no cinema. A gente nem tinha material. Começou a partir do improviso e da adaptação.
E o que mais mudou na área de efeitos especiais desde que você começou?
O mais importante é o modo como se enxerga cinema. Antes de o digital ser estabelecido e aceitável nos festivais, o cinema era uma arte muito elitista. Ainda é um pouco assim. Gasta-se muito dinheiro para fazer cinema. Quando era com película mais ainda. Para o horror era muito complicado porque a elite financeira do cinema brasileiro não tinha interesse no gênero. Com a democratização da tecnologia, outros pontos de vista foram agregados e isso criou a necessidade de mais profissionais.
Apesar de ter uma carreira consolidada nos efeitos visuais, você decidiu produzir seus próprios filmes…
Acho que é uma idiotice inerente de todo o realizador [risos]. Ganho dinheiro fazendo uma coisa e gasto realizando os meus projetos. Sei que é estúpido, mas continuo por uma necessidade de me expressar. Realizar é uma vontade minha de testar linguagens, experimentar e ver as coisas que imagino ganhando vida na prática.
E no meio do caminho ainda tem uma carreira de ator?
Não chamaria de carreira [risos]. Chamo de acidente. Entrei no Desalmados para ajudar o [diretor e colega na Infravermelho Filmes] Raphael [Borghi] a produzir efeitos. O ator que ia fazer o papel encontrou um compromisso mais interessante para a carreira dele. Aí na falta disso, vai isso mesmo. Eu não diria que é uma carreira porque seria uma ofensa para os atores.
Quais são os temas que mais te interessam discutir no cinema?
Em diversas artes, existem aqueles que buscam representar a realidade como ela é e aqueles que buscam colocar a sua realidade sobreposta. Há uma representação literal do que se vê e uma interpretação do que se sente com uma imagem. Eu quero realmente propor um novo universo visual e uma nova forma de mostrar isso. O cinema, por ser um veículo que precisa ser assistido para ser representado, depende da capacidade do espectador de entender a mensagem. Se eu ousar e colocar signos e imagens abstratos demais, corro o risco de o meu espectador não compreender a ideia. A sorte do terror e do cinema fantástico é que algumas coisas são comuns em qualquer cultura, como o medo e o sangue. Todo mundo sabe o que significa.
Você acha que isso aparece em todos os projetos que você dirige?
Não. Uma coisa sou eu como realizador. Outra sou eu como profissional de uma equipe. Mas mesmo nos meus projetos que deveriam ser mais comerciais, acabo me traindo e tentando fazer uma coisa sincera. Se eu for seguir uma fórmula, vou estar fazendo publicidade e não cinema.
Então podemos esperar elementos absurdos em Skull – A Máscara de Anhangá como ocorre em A Percepção do Medo (2016), seu outro filme?
Também não é para chutar o balde [risos]. A Percepção do Medo surgiu como um projeto de artes visuais. Por isso são dois realizadores. Ao mesmo tempo que você tem o Armando [Fonseca] dando uma visão do que é viver em Brasília, na segunda parte há uma visão sobre o que é viver em São Paulo. É videoarte. É importante entender que o cinema em si não é arte. É uma atividade comercial, um investimento. Nenhuma arte deveria ser medida por bilheterias, prêmios ou números de festivais que participa. Há filmes que se enquadram na atividade artística. A gente tenta conciliar os dois, mas num filme como o Skull, que é de uma produtora norte-americana, é preciso tomar cuidado. Não estou traindo minha sinceridade pessoal, mas relevando o cinema como uma arte que também é coletiva e precisa da opinião de todo mundo envolvido.
Sinto que o curta A Mão, que estará no Histórias Estranhas, tem algumas chaves para entender A Percepção do Medo…
Talvez eu esteja colocando referências e linguagens que só eu vá entender, mas se eu conectar isso com diversos projetos e diversas mídias, consigo dar mais pistas para o espectador. Cidade Cadáver, meu próximo longa, se enquadra nisso também. Começou com uma história em quadrinho, tem um conto e o A Mão. Será preciso entender as derivações da obra para continuar assistindo ao filme.
Essa parece ser uma marca da Infravermelho Filmes, na verdade. Já há o universo de zumbis de Desalmados e A Última Cova…
Isso é uma proposta de conectar um universo e criar mais solidez. Não comparando, mas comparando, o universo que a Marvel criou para o cinema é mais ou menos isso. Esse é um conceito que existe há bastante tempo, de que os mesmos personagens podem habitar projetos diversos.
A crise no mercado audiovisual abala os planos da Infravermelho Filmes?
Poderia falar que nossos projetos são independentes, o que é verdade, mas a minha carreira profissional depende de outros filmes. Gasto dinheiro nos meus projetos, mas ganho dinheiro trabalhando em cultura. O abalo no sistema prejudica tudo. Quanto menor a produção cultural, menor o desenvolvimento cultural. Quando tem menos gente fazendo filme, as propostas são limitadas e o que consumimos também.