Em uma das primeiras cenas de A Lenda de Golem (2019), um rabino diz a sua comunidade que o mundo foi construído sobre vasos quebrados. A fala se relaciona com um complexo conceito da religião judaica, mas também serve como uma ilustração da principal metáfora da trama, a de que a nossa sociedade está corrompida em sua base.
Dirigido pelos israelenses Doron Paz e Yoav Paz, a produção conta a história de uma mulher que, depois de ver sua vila invadida por um grupo de forasteiros, decide criar um Golem por meio de um ritual proibido para proteger a todos. O monstro surge na forma de uma criança, que se livra dos invasores, mas no meio do caminho também mata várias pessoas do vilarejo.
Narrativas de horror que colocam crianças como vilões costumam trabalhar a ideia de genealogia do mal. Filmes como A Tara Maldita (1956), A Aldeia dos Amaldiçoados (1960) e O Anjo Malvado (1993) lidam com seres humanos que nasceram ruins e ameaçam o futuro daqueles que os cercam com jogos de manipulações e brincadeiras doentias.
Se o cinema de horror faz um mapeamento dos nossos medos, esses filmes demonstram que, diante dos horrores que vemos todos os dias saindo dos nossos governantes, não temos muita esperança do que vem por aí.
O primeiro semestre deste 2019 foi particularmente recheado de produções do subgênero crianças-assassinas, com a estreia de Brightburn – Filho das Trevas (2019), Maligno (2019), The Hole in the Ground (2019) e a refilmagem de Cemitério Maldito (2019), além do próprio A Lenda de Golem. Embora sejam muito distintas entre si, essas histórias parecem dialogar com a ideia de que há algo muito errado na fundação da nossa sociedade – que permite o crescimento de claras ameaças bem diante dos nossos olhos.
Em Brightburn – Filho das Trevas, um bebê encontrado em uma nave é adotado e se torna uma violenta força de destruição sem que os pais possam fazer qualquer coisa para controlá-los. Em Maligno, um assassino em série reencarna em um recém-nascido. The Hole in the Ground, Cemitério Maldito e A Lenda de Golem, além de crianças monstruosas, também lidam com a ideia de que a terra está contaminada com o mal. “A terra é podre”, repete a sombra de Victor Pascow a Louis, enquanto este carrega o corpo da filha em direção ao cemitério de animais.
Parece sintomático que esse seja o tipo de narrativa que um ano como 2019 consiga produzir. Se o cinema de horror faz um mapeamento dos nossos medos, esses filmes demonstram que, diante dos horrores que vemos todos os dias saindo dos nossos governantes, não temos muita esperança do que vem por aí.
De alguma forma, essas produções também reconhecem que nós mesmos somos culpados pelos vasos quebrados de nossa sociedade. Diferentemente de uma trama como a de A Profecia (1976), em que o anticristo Damien nasce do ventre da personagem de Lee Remick sem qualquer explicação lógica, nessa nova leva de produções, os pais são sempre responsável pela destruição causada pelos próprios filhos.
A obra deste ano que melhor dialoga com essa culpa de uma sociedade estruturada por uma base corrompida e quebrada é Nós (2019), de Jordan Peele. O longa-metragem literalmente mostra um submundo, logo abaixo do nosso, habitado por reflexos distorcidos e ressentidos conosco por terem vivido anos na marginalidade. O desfecho chega até a insinuar que essas criaturas, que vestem vermelho e empunham tesouras como armas, são, na verdade, vítimas circunstanciais da mesma sociedade que os excluiu. Especialmente as crianças, que estão ali para pagar pelas decisões dos próprios pais.