Quando pensamos em duplas famosas de pais e filhos pode parecer que talento e gosto são apenas heranças biológicas, que passam pelo DNA. Jair Rodrigues e Jairzinho; Érico Veríssimo e Fernando Veríssimo, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres… Enfim. Não tenho lá nenhum talento especialíssimo como os famosos que me vieram à cabeça, mas o assunto me persegue desde esses dias, quando me vi tendo que lidar com um lampejo de “preferência musical” da filhota.
Liguei o rádio para ouvir noticiário, mas algo me distraiu nesse ínterim e acabei deixando na primeira emissora que sintonizei, sem prestar atenção ao que estava sendo transmitido. Estranhei a quietude da criança e, quando vejo, lá estava ela: sentada em frente ao rádio, ouvindo um batidão sertanejo universitário e se balançando no ritmo da música, com um largo sorriso no rosto. Ela estava amando aquela melodia (que eu nem faço ideia de qual era).
Achei bonitinho e estranho e, dali em diante, pensei muito sobre isso. Não tenho nada contra nenhum estilo musical e nem sou “xiita” com música, embora tenha minhas preferências. Mas me peguei pensando sobre uma faceta da maternidade que ainda não tinha imaginado: e se o filho que você cuidou e criou se torna uma pessoa totalmente diferente de você? Não falo só da adolescência quando, via de regra, pais e filhos estão em espectros diametralmente opostos no quesito gosto. Mas de verdade mesmo: imagine se o Lucas Lucco fosse filho do Robert Plant? Como seria essa relação familiar? (risos)
A herança cultural que passamos aos filhos não é – e nem deve ser – uma obrigação a ser seguida religiosamente. É mais uma “sementinha” que se planta e cultiva para ver no que vai dar. Apresentaremos aos filhos as músicas, filmes, autores, programas de tevê e ocupações favoritas. Esperamos – ansiosamente – que eles gostem, que se sintam marcados como nós, que façam as mesmas reflexões que nós um dia fizemos a partir de um produto cultural.
Uma pesquisa feita pela Netflix no ano passado confirmou isso: 85% dos pais, de diferentes países, apresentaram desenhos animados que viram na infância para os filhos. Os participantes da pesquisa disseram que levam muito a sério o fato de manter vivas as referências culturais da própria infância pois 76% deles acreditam que as crianças aprendem importantes lições de vida e 75% voltam a se sentir crianças com a prática.
Cabe a nós desenvolver o gosto dos pequenos, apresentá-los ao que gostamos e deixá-los livres para ter contato com as diversas e variadas opções de produtos culturais.
O hábito da leitura também é passado de pai para filho. A 4ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil aponta que é forte a associação entre a formação de leitores e o hábito de leitura dos pais. A sondagem incluiu a percepção sobre o hábito de leitura dos pais e entre o grupo de leitores – aqueles que leram ao menos um livro nos últimos três meses – e de não leitores e os que leem, costumavam ver pai ou mãe lendo, diferente dos que não tem o hábito.
Estamos todos na tentativa de repetir nos filhos um pouco do que somos ou do pouco em que achamos que somos bons. Mas aí vem a prática e te mostra que não necessariamente vai ser assim. Nossos filhos não são nossas cópias, felizmente ou infelizmente… Mas cabe a nós desenvolver o gosto dos pequenos, apresentá-los ao que gostamos e deixá-los livres para ter contato com as diversas e variadas opções de produtos culturais.
Mais do que forjar o nosso repertório, temos a missão de fazer com que aprendam que ouvir música é prazeroso, ler pode ser maravilhoso, assistir filmes é ser apresentado a um universo à parte. É inegável que teremos grande influência na vida dos pequenos e não podemos privá-los de uma experiência cultural apenas porque achamos algo “pobre” ou “chato”. E tudo bem se mesclar o DVD da Galinha Pintadinha com o show dos Rolling Stones na década de 1970. Talvez melhor do que esperar que eles gostem do mesmo que nós, seja apresentar-lhes o mais amplo repertório possível, para que conheçam mais e multipliquem suas conexões neurais. Espero conseguir raciocinar de forma lógica também quando, daqui a alguns anos, eu ver minha filha com um exemplar qualquer do Paulo Coelho a tiracolo.
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