Estou em uma cama, semi reclinada, com a coluna a 45º, confortavelmente amparada por travesseiros. Cinco e meia da manhã, mostra o relógio na parede à minha frente. Acompanho o tic-tac do relógio com o tamborilar de dois dedos nas diminutas costas da minha segunda filha, que nasceu horas antes. Ela dorme deitada de bruços no meu colo, aninhada entre meus seios e demonstra estar tão confortável quanto eu. O que eu sinto só pode ser resumido com uma palavra: amor. Amor sem precedentes misturado a instinto de proteção, de cuidado. Amor incondicional, amor que só cresce, amor bobo por cada olhar ou por cada movimento feito pela pequeníssima criatura. Aquele amor de mãe, amor clichê, amor.
Acabamos de nos conhecer, mas toda essa proximidade, contato e intimidade é respaldada pelos nove meses em que fomos meio que uma coisa só e ela, ora parasita, ora simbiose, ocupava um lugar de destaque no meu baixo ventre. Ali se criou, passou de um amontoadinho de células para algo como um girino e aos poucos ganhou aspecto humano. Até que – não sei se movida por algum impulso biológico ou pelo cosmos ou por alguma entidade misteriosa que talvez dê as cartas no universo – decidiu que estava pronta para enfrentar o mundo aqui fora e fazer a transição do mundo submerso para onde é preciso respirar ar.
‘…Com seios e barriga a ponto de estourar, a dor ordenada por Deus prestes a acontecer, seguida por leite e cocô, a viagem insone através de uma terra incógnita de deveres detestáveis, onde o amor brutal roubará a vida dela…’ (Ian McEwan)
Repasso mentalmente os últimos meses, desde que soubemos da existência dessa nova criatura e então fico pensando no que teremos dali adiante, nas horas seguintes. Preocupações iniciais com a saúde do bebê: pesa, mede, avalia a amamentação, limpa o bebê, troca a fralda, confere isso, confere aquilo, escuta o coração, mede a temperatura… (mas para quê tanta burocracia?).
E enfim chegará a tarde, depois do sol a pino, quando outras pessoas virão conhecê-la e visitar a mãe recém-parida. Mas desde essa hora comecei a esperar com ansiedade ímpar a chegada de uma visita específica, a da irmã mais velha, que tem um ano e oito meses, portanto, ainda se encaixa na categoria de bebê, assim como a que acaba de nascer.
Entre todas as aventuras e passeios e planos que pensávamos em viver com ela – idas aos museus, parques, restaurantes, pontos turísticos diversos, cinema, sorveteria, templos, o tempo para leitura e brincadeiras, o tempo para apresentar a ela as coisas do nosso mundo, inclusive é esse o motivo da existência dessa coluna – não calculamos que a chegada de uma irmã seria uma das primeiras oportunidades que ela teria de contato com o mundo, com o novo, com o diferente.
Ali, com a filha recém-nascida no colo, na penumbra e no silêncio do fim da madrugada, aproveitando um aconchego sem igual, percebo que não é só mais uma vida no mundo. Não é só o amor brutal, como resumiu Ian McEwan em Enclausurado (Companhia das Letras, 2016), que se multiplicou quando vi aquele rostinho que não mede mais de 5cm X 5cm. Acabo de fornecer mais um elemento cultural da vida em sociedade para primogênita, agora irmã mais velha: ambas vão aprender a dividir, esperar, suportar – tanto no sentido de suporte quanto no sentido de aguentar – uma a outra. E eu vou ver isso de perto e participar ativamente da construção desse relacionamento que já é indissociável de todos nós; muito provavelmente essa seja a maior de todas as nossas aventuras.