Antes da pandemia – naquele tempo distante – eu era o tipo de mãe que evitava telas. Controlava o tempo, assistia junto, regulava o que estava sendo visto. As crianças mal sabiam mexer no controle remoto. A toda oportunidade, eu falava sobre os malefícios das telas paras aqueles pequenos cérebros em franca formação.
Confesso que era um árduo esforço da minha parte, por vários motivos: eu mesma fui uma criança que assistia a MUITA tevê; eu gosto até hoje de ver televisão; sempre adorei mexer no computador e celular e, não à toa, usei as telas como mote de pesquisa e de trabalho. Veio a pandemia e eu pude, enfim, dar vazão a este inócuo esforço.
As crianças agora assistem a tevê por várias horas, todos os dias. Já sabem ligar, desligar, zapear entre as alternativas, jogam joguinhos no celular e no computador. Nos últimos meses, estão fascinadas por vídeos de cozinha em miniatura e fábricas de alimentos. Se deixar, ficam vendo longos vídeos que mostram massas sendo batidas em batedeiras gigantes e depois funcionários organizando milimetricamente confeitos em sacos de confeiteiro, sem derrubar nenhuma gota.
Os vídeos que o YouTube Kids sugere tem uma pegada muito mais comercial: brinquedos sendo desembalados, crianças com um mundo de brinquedos, brinquedos sendo montados e excessivos vídeos de junkie food…
Vão navegando entre esse universo de vídeos e nem sempre estou por perto para ver. Assistem em uma conta paga, então, sem anúncios e (parece) que os vídeos sugeridos são sempre de uma temática bem semelhante, diferente da conta que eu uso – gratuita – e que, se deixo tocar automaticamente, me manda para outras listagens completamente diversas daquelas da pesquisa inicial.
Dia desses me preocupei que elas tivessem acesso a algum conteúdo inapropriado por ali e resolvi procurar os vídeos de mini cozinha na versão do YouTube feita para crianças, o YouTube Kids. O app é uma versão do site de vídeos que tem mais ferramentas de controle e vídeos específicos para crianças.
O que era para gerar “tranquilidade” me deixou com uma pulga atrás da orelha: na ocasião, os vídeos no YouTube Kids eram quase todos de unboxing de brinquedos ou de adultos brincando com brinquedos de crianças, fazendo voz de criança (o que acho um pouco esquisito).
Resolvi acompanhar as crianças e percebi que os vídeos que o YouTube Kids sugere tem uma pegada muito mais comercial: brinquedos sendo desembalados, crianças com um mundo de brinquedos, brinquedos sendo montados e excessivos vídeos de junkie food… Antes elas viam vídeos de receitas de bolo, na ferramenta que deveria ser mais amigável à infância, apenas salgadinhos e preparados ultraprocessados.
A menina de quatro anos teve reações quase que imediatas: dizia que os brinquedos dela eram chatos e sem graça e queria os que ela tinha visto nos vídeos – o que nunca aconteceu quando elas estavam zapeando pelos vídeos do YouTube convencional.
O YouTube Kids foi criado em 2016 no Brasil, depois de inúmeras críticas à plataforma e do episódio conhecido como “Elsagate”, quando vídeos de adultos vestidos como personagens infantis reproduziam cenas com insinuações sexuais e com cenas violentas e estavam nas listagens de vídeos sugeridos para as crianças.
Os canais de vídeos “pirata” imitam personagens famosos do mundo infantil e como o sistema que direciona é automático, não é feita uma distinção adequada, que seria fruto do olhar apurado de um humano por trás da máquina e não dela por conta própria.
Embora a empresa sempre se posicione favorável a mudanças para tornar o espaço mais seguro, continuo achando que é mais adequado que elas vejam um clip de funk pesado do que violência e consumismo travestido de ingenuidade. Voltei a regular um pouco mais as telas – não para que assistam menos, mas para que não vejam o YouTube Kids.