Por Mariana Sanchez*, especial para Escotilha
Dia desses, caminhando pela Plaza de Mayo, cheguei ao cruzamento de Diana Sacayán com Claudia Schaeffer, duas ruas de Buenos Aires que eu desconhecia. Bastou me aproximar da placa para entender que se tratava de uma intervenção urbana em memória de duas vítimas de feminicídio na Argentina: aquele, na verdade, era o cruzamento da avenida Rivadavia com a calle Reconquista.
Primeira trans a ter sua nova identidade reconhecida juridicamente no país, Diana Sacayán esteve presente na histórica manifestação Ni Una Menos, que lotou a praça do Congresso no dia 3 de junho de 2015. Usava uma blusa cor de rosa com um lenço verde no pescoço e segurava um cartaz com a frase “Basta de travesticídios”. Quatro meses depois, morreria vítima de um. O crime aconteceu dois meses antes de Claudia Schaeffer ser assassinada a facadas pelo marido, dentro da própria casa, enquanto seus advogados esperavam no jardim para que assinassem a papelada do divórcio.
Diana e Claudia não se conheceram em vida, mas seus nomes — e destinos — se cruzariam naquela placa em plena Plaza de Mayo. E era para lá que eu me dirigia em meio à multidão naquela tarde de 3 de junho de 2016, exatamente um ano depois da primeira marcha. Entre uma e outra, porém, o movimento não conseguiu aquilo que reivindicava: não houve “nenhuma a menos”, mas “275 a menos”. 275 novos feminicídios no intervalo de um ano.
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Uma centena de pares de sapatos de salto pendiam das árvores raquíticas de outono, margeando a Avenida de Mayo. A instalação artística parecia evidenciar a fragilidade daqueles pés. Dava para sentir a onda de sororidade e energia feminina enquanto eu caminhava corpo a corpo com tantas hermanas. No peito, um bottom com a imagem-síntese do movimento: uma menina de olhos fechados e mãos dadas com seu ursinho de pelúcia, mas sem baixar o outro punho, em riste. Como disse o uruguaio Eduardo Galeano naquele jogo de palavras tão seu: “No fundo, o medo que a mulher tem da violência do homem é o espelho do medo que o homem tem da mulher sem medo”. Coragem e vulnerabilidade como dialética, estampada também na ilustração do quadrinista Liniers.

“Quero ser livre, não valente”, dizia o cartaz nas mãos de uma jovem de lábios pintados da cor do seu cachecol. “Desculpe o incômodo, estão nos assassinando”, lia-se um cartaz nas mãos de outra. “Anatomia não é destino”, gritava-se ali. “Quero escolher as mãos que me acariciam”, gritava-se lá. Eram adolescentes, senhorinhas de cabelos de algodão, crianças pequenas com suas famílias, adultas de todas as idades. Quantas vezes terão sido vítimas de micromachismo, de piadas sexistas que corroboram a cultura do estupro, de violências mais ou menos veladas, mais ou menos perigosas? Terão perdido alguém nessa guerra silenciosa, uma amiga, uma filha, a própria mãe?
A cada 30 horas uma mulher é morta na Argentina — no Brasil, uma a cada duas horas. Afortunadas aquelas que estávamos ali, milagrosamente vivas.
Eu procurava reter aquelas mensagens no calor da marcha, anotando e fotografando o que podia: “Empoderadas contra o patriarcado”; “Somos o grito das que não têm mais voz”; “Do meu corpo e meu vestuário, preserve seu comentário”; “Abaixo o cis-tema”, alguém escreveu, num trocadilho politizado. Uma menina de uns sete anos erguia o mais alto que podia uma placa com o lema da marcha: “Vivas nos queremos”. A cada 30 horas uma mulher é morta na Argentina — no Brasil, uma a cada duas horas. Afortunadas aquelas que estávamos ali, milagrosamente vivas.
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Apesar dos números e histórias ainda abomináveis, algo parece estar mudando pelo simples fato de querermos falar sobre isso. O assunto nunca esteve tão vivo nas rodas públicas e privadas, em hashtags e até na ficção literária. A América Latina está mesmo vivendo sua mais importante primavera feminista. Por isso, achei maravilhoso que a Feira Internacional do Livro de Buenos Aires deste ano tenha convocado escritores latino-americanos para discutir o tema na mesa “Narrar o feminicídio”, com a uruguaia Marisa Silva Schultze, o chileno Diego Zúñiga e os argentinos Álvaro Abós, Gabriela Cabezón Cámara e Selva Almada, única publicada no Brasil até agora.
Autora de Siempre será Después, Marisa começou sua fala muito apropriadamente, com a letra de um bolero famoso: “Te vas porque yo quiero que te vayas / a la hora que yo quiera te detengo / yo sé que mi cariño te hace falta / porque quieras o no / yo soy tu dueño”. Seu romance narra as sequelas de uma criança, agora um homem, que teve a mãe assassinada pelo pai, suicida. Uma situação de violência das mais corriqueiras e naturalizadas: a doméstica, familiar. “As coisas mais brutais que acontecem na rua acontecem, antes, dentro de casa”, disse, à mesa. E lembrou que narrar o medo é sempre mais difícil do que narrar a violência, porque é algo que passa internamente, “não tem cena”.
Narrar o medo é sempre mais difícil do que narrar a violência, porque é algo que passa internamente.
Outro livro comentado naquela noite foi Racimo, de Diego Zúñiga, prodígio da nova geração de escritores chilenos (em 2012 li seu belíssimo romance de estreia, Camanchaca, e até hoje não entendo como continua inédito no Brasil). Racimo é inspirado no caso real conhecido como o psicopata de Alto Hospício, que nos anos 90 estuprou e assassinou quatorze mulheres no norte do Chile — doze delas, meninas. A história nunca ganhou o devido espaço na imprensa local. O curioso é que Zúñiga, também jornalista, preferiu contá-la como uma ficção policial. “O jornalismo neutraliza a palavra e a torna inofensiva, enquanto um escritor luta constantemente contra isso”, defendeu.
Na contramão do projeto literário do chileno está Chicas Muertas, livro da argentina Selva Almada que mais me impressionou entre os que li no ano passado. Selva é ficcionista (seu O Vento que Arrasa, publicado pela Cosac Naify, foi muito bem recebido no Brasil), mas aqui ela se lança à não-ficção, recordando três casos emblemáticos de feminicídio na Argentina dos anos 80, até hoje sem solução. “Eu não podia fazer jornalismo, porque não sou jornalista. Tampouco queria escrever um romance, porque aquelas não eram personagens de ficção”, ponderou.
Em primeira pessoa, Selva investiga aquelas mortes e escreve uma crônica que entrelaça a experiência alheia com sua própria, revelando que toda mulher latino-americana já viveu, em alguma medida, situações inquietantes de assédio, machismo, misoginia, violência, abuso de poder. Em dado momento do livro, lembra uma das tantas viagens que fez de carona pelas estradas da província de Entre Ríos, quando cursava faculdade. Ela, no banco de trás, a amiga, na frente. Ao notar que a mão do motorista deslizava pelas pernas da colega, desembestou a perguntar qualquer coisa. A fala como uma espécie de tábua de salvação. “Falar, falar sem parar, eu que não falo nunca. Um ato de desespero infinito”. Talvez, escrever Chicas Muertas também seja uma forma de aliviar esse desespero, dar voz a essas meninas e juntar seus ossos quase esquecidos. Um ato político, sem dúvidas, já que “escrever sobre a violência contra as mulheres é tirar a palavra dos donos de tudo, e essa é a missão dos escritores”, defendeu outra autora interessantíssima, Gabriela Cabezón Cámara.
Ainda que a literatura argentina seja sempre lembrada por Borges, Cortázar, Bioy Casares e Ernesto Sábato, nunca faltaram grandes escritoras deste lado do Rio da Prata. O que faltava era espaço, visibilidade, uma frestinha editorial que iluminasse suas obras e as colocasse na mesma prateleira dos cânones. Porque só isso explica o fato de que pouco se lê Alfonsina Storni, Silvina Ocampo, Alejandra Pizarnik. E que se leia Alan Pauls no Brasil, mas não Hebe Uhart. Tenho para mim que, hoje, a melhor produção literária argentina está sendo assinada por mulheres. Como Selva Almada, Samanta Schweblin, Ariana Harwicz, Mariana Enríquez, Gabriela Cabezón Cámara, Silvia Molloy.
Das ruas às livrarias, estamos ocupando com excelência cada vez mais lugares de poder. E era significativo falar sobre este momento na estreia deste espaço que inauguro hoje n’A Escotilha. A proposta, aqui, é trazer relatos das minhas vivências em Buenos Aires, onde moro há quase um ano, sempre com um viés cultural, informativo e muito pessoal — tentarei ser menos prolixa nos próximos, prometo. Que seja um território de diálogo amplo e diverso entre as expressões culturais da América hispânica e o Brasil, essa ilha que, apesar de arranhar o portunhol, parece mais e mais interessada em olhar para seus vizinhos.
* Mariana Sanchez é jornalista curitibana, especialista em Cinema pela Faculdade de Artes do Paraná e em Tradução pela Universidade Gama Filho.