Por que nós, brasileiros, ainda vemos novelas? O formato, herdeiro dos folhetins românticos do século 19, publicados nas páginas dos jornais da época, e dos melodramas transmitidos pelas emissoras de rádio antes do surgimento da televisão, segue ocupando o horário nobre, a despeito de a ideia de passar meses e meses assistindo a capítulos diários, sempre no mesmo horário, hoje parecer algo um tanto ultrapassado em tempos de Netflix e HBO Max.
Primeiro foi o canal pago Viva, que apostou há alguns anos no saudosismo dos mais velhos e na curiosidade dos jovens, reprisando títulos do catálogo da Rede Globo, alguns muito populares, e outros mais esquecidos. No auge da pandemia, a Globoplay, plataforma digital de streaming, deu um golpe de mestre: todos os meses, relança em seu catálogo, na íntegra, grandes sucessos do passado, que agora podem ser vistos como e quando quisermos.
Foi assim que revi, ao longo de três, quatro meses, Vale Tudo, folhetim de Gilberto Braga exibido originalmente em 1988, considerado um marco da história do gênero, por trazer para a telinha mazelas enfrentadas pelo Brasil no início da redemocratização, como inflação, racismo, preconceito de classes e corrupção. Fiquei surpreso com o frescor da novela, que segue atual em suas discussões e até mesmo em sua dramaturgia, ainda que hoje o ritmo das narrativas seja mais acelerado, não oferecendo tantas cenas longas, marcadas por diálogos antológicos, como as escritas por Braga.
Já estão disponíveis da Globoplay outros marcos do gênero, como O Bem Amado (1973) ; de Dias Gomes, Roda de Fogo (1986), assinada por Lauro César Muniz, com a colaboração de Marcílio Moraes; e O Clone (2001), de autoria de Gloria Perez. Não poderiam ser mais díspares em estilos e temáticas, mas compartilham um traço em comum: as três foram grandes sucessos de audiência.
Atualmente, estou maratonando Pai Herói (1979), de Janete Clair, considerada a grande dama das telenovelas. Mas por que resolvi vê-la de novo, 43 anos depois?
Em março daquele ano, o general do Exército João Baptista Figueiredo tornou-se o último presidente da República do período da Ditadura Militar e, durante seu governo, o Brasil passou pelo que é conhecido como o processo de abertura, com o retorno ao país dos exilados políticos de esquerda, e o lento relaxamento das regras estabelecidas pelo Ato Institucional Número 5 (AI-5), que fez da censura uma política de Estado.
Pai Herói sucedeu Dancin’ Days, enorme sucesso de audiência e estreia de Gilberto Braga no horário das 20 horas, uma novela moderna paras os padrões da época, que tinha a febre das discotecas como pano de fundo. De certa forma, a história criada por Janete Clair pareceu, em um primeiro momento, um retrocesso às fórmulas do melodrama rasgado. Mas essa pode ser apenas uma impressão.
No centro da trama está André Cajarana (Tony Ramos), jovem do interior de Minas Gerais que chega ao Rio de Janeiro e se instala em Nilópoles, na Baixada Fluminense. Lá, ele descobre que seu pai, que tinha como herói, não era o homem honrado e cheio de qualidades que sempre acreditou ser. Malta Cajarana era um bicheiro cruel, odiado, por supostamente ter assassinado um padre local, agora tido como santo milagreiro.
Recebido de forma hostil pela cidade, André é acolhido por uma mulher mais velha que ele, Ana Preta (Glória Menezes), dona de um clube de samba, que pode ou não ser um bordel disfarçado. Por conta da censura vigente à época, isso nunca fica exatamente claro. Ana também é discriminada por ser mãe solteira de uma jovem, filha natural de um rico comerciante da região, o italiano Bruno Baldaracci (Paulo Autran, em sua estreia na Globo), casado com a mãe de André, Gilda (Maria Fernanda).
Talvez seja por conta dessas mesmas razões que ainda assistimos aos folhetins televisivos. Seja de forma distorcida, conformada, ou de maneira mais realista, e instigante, as novelas seguem refletindo quem somos, ou aspiramos ser como sociedade.
Embora viva com Ana Preta um romance que mexeu com o Brasil, por conta da diferença de idade entre os personagens, e do carisma da personagem de Glória, André se apaixona mesmo pela bailarina Karina (Elizabeth Savalla), rica herdeira de uma família de latifundiários. Caberá ao protagonista salvar a mocinha de seu marido, o maquiavélico vilão César (Carlos Zara), que se casou com ela por interesse.
O enredo, apesar de ter uma estrutura melodramática clássica, como a sinopse acima sugere, tem suas subversões. Vai sutilmente elevar um município periférico da região metropolitana carioca a cenário principal da trama. Também vai discutir preconceitos de classes e etário.
O motivo pelo qual decidi rever Pai Herói tem, certamente, muito a ver com nostalgia da minha adolescência – eu tinha 13 anos quando a novela estreou e minha família a assistia todos os dias. Mas também está relacionado à vontade de ver como a teledramaturgia representava aquele Brasil, seus valores, sua moda, sua mentalidade, naqueles anos de transição.
Talvez seja por conta dessas mesmas razões que ainda assistimos aos folhetins televisivos. Seja de forma distorcida, conformada, ou de maneira mais realista, e instigante, as novelas seguem refletindo quem somos, ou aspiramos ser como sociedade. São espelhos nos quais por vezes nos enxergamos, como foi o caso de Vale Tudo, ou em que mergulhamos, para escapar da realidade.