A criança olha os doces que estão dispostos no balcão do caixa. Passa os dedos por uma caixinha de plástico, logo escorrega a mão para um punhado de drops e por fim se decide por um pacotinho preto e roxo, com temas de monstro e com a possibilidade de não ser um chiclete tão doce. “Aí diz que pode ser doce ou azedo”, diz o pai, sério. A criança olha para ele com uma fúria que jamais vi em olhos infantis. É o enfrentamento das coisas, a desordem do mundo acontecendo em um balcão de padaria. O menino é só veias e carnes rosadas de ódio, olhando fundo nos olhos do pai por baixo das sobrancelhas como um dos loucos de Kubrick.
Estende a mão por cima da cabeça e entrega o pacote para que o pai o compre, resoluto em sua decisão, impulsionado pela vontade de contrariar o que não chegou a ser uma desaprovação, quando muito uma advertência paterna sobre a experiência contida na embalagem. Sente-se mau em toda a extensão de seu pequeno corpo, está aprendendo a desafiar o pai aos poucos. Treme de raiva e arreganha os dentes porque não sabe direito o que fazer com a sua raiva. Pouco provável que corra amok entre os transeuntes da pequena padaria do centro da cidade, e o pai ainda é muito maior. Por isso só encara o adulto que lhe paga o chiclete de monstro. Dinheiro recolhido no balcão e jogado displicentemente dentro da carteira enorme, deixa sobre a fórmica os monstros e o chiclete doce ou azedo para que o menino apanhe sozinho. Dá as costas para o balcão antes disso, que é para que o menor perceba que suas ações são de sua inteira responsabilidade agora. Ele entende isso rápido.
‘Aí diz que pode ser doce ou azedo’, diz o pai, sério. A criança olha para ele com uma fúria que jamais vi em olhos infantis. É o enfrentamento das coisas, a desordem do mundo acontecendo em um balcão de padaria.
Não trocam palavras, muito menos afeto. O pai responde seu ódio com uma frieza inescrutável. O menino não arreda um milímetro em seus pensamentos negros mesmo assim. Talvez seja a maneira que descobriu, esgueirando-se pela mata virgem de seus próprios sentimentos, para chamar para si uma atenção que até então havia julgado sua de direito. Vai crescer buscando essa atenção, encontrando subterfúgios novos para que o pai lhe olhe nos olhos. O santo graal do amor paterno, um cadinho de afeto, algo que ultrapasse a hombridade do tapinha nas costas.
Enfia o chiclete na boca. Sabe que nenhum amor virá. Ninguém vê quando sutilmente contrai o rosto. Sente o gosto azedo inundando sua boca.