Eu nunca não tive uma barriga. Bem, talvez numa primeira infância, uma época em que ser cônscio sobre o próprio corpo é, no mínimo, patológico. Colocando um ponto de passagem arbitrário nesse período, posso dizer que desde que sei ler e escrever, nunca não tive uma barriga. O que essa barriga operou sobre o resto do meu corpo e sobre a minha mente talvez nunca seja possível avaliar em toda sua dimensão. Posso, partindo de uma análise cartesiana, dizer que nunca fui magro, por exemplo. Nunca não tive uma divisão clara entre abdômen e pélvis, e isso por alguma razão se tornou um problema. Crescer junto ao mar, cuja natureza indômita e ar livre forçado pela geografia inspiram o culto ao corpo, fez disso um problema. Um problema que não existe para uma larga parcela da população mundial.
O primeiro e principal problema, obviamente, é de ordem sexual. Foi só no Brasil que vi essa história de uma mulher muito bonita namorar um cara gordinho, disse uma vez um amigo francês, impactado com a relativização dos corpos que, para a República Francesa, inexiste e que, para mim, chegou de maneira tardia. Uma amiga me confirmou: as únicas mulheres que namoram homens gordos são mulheres que precisam de um companheiro com uma permanente baixa autoestima, indesejável para outras mulheres. Dessa maneira, assegura-se o domínio sobre aquele território emocional.
Uma amiga me confirmou: as únicas mulheres que namoram homens gordos são mulheres que precisam de um companheiro com uma permanente baixa autoestima, indesejável para outras mulheres. Dessa maneira, assegura-se o domínio sobre aquele território emocional.
Lá pelos idos de 2015, um texto em um blog exaltando o tipo de corpo que eu possuo foi o bastante para que outros infelizes se inspirassem. Dad bod: corpinho ‘pai de família’ vira o mais cobiçado entre as mulheres nos EUA, diziam as manchetes das revistas de estilo de vida – que, a propósito, levam muito em conta o estilo de vida dos Estados Unidos. Enquanto a repercussão do texto no Brasil tratou de dourar a pílula, o conteúdo original é mais uma confirmação da condescendência nossa de cada dia. No fim das contas, as “mulheres dos EUA” gostam de um corpo malhado, mas não sarado, e isso por alguma razão chegou até o Brasil como “gordinho”. Também não se trata de uma preferência nacional, como a matéria deu a entender, tudo não passou de um texto em um blog. E as que gostam, o fazem por razões egóicas e mesmo um pouco cruéis também. Gostamos de fazer parte de um casal bonitinho, mas ainda queremos ser o centro das atenções e a parte mais bonita do casal, diz o texto. O corpo gordo também não intimida e não deixa as mulheres inseguras com o próprio corpo, a autora completa, e vai além: com o dad bod, a mulher pode comprar o pacote marido sem mais tarde se decepcionar com o que o bonitão da faculdade se tornou. Melhor já baixar as expectativas desde já, portanto.
O segundo problema é uma consequência do primeiro, e trabalha no campo psicológico. O senhor agora vai mudar de corpo, dizem as promessas e resoluções, alheias à falta de força de vontade que é marca registrada de pessoas dignas de pena. Não há uma crença em si. A publicidade diz “coma” e também diz “você pode fazer tudo o que quiser”, e ignora se tratarem de uma contradição. Solapam esperanças, tenacidades, todo e qualquer esforço se mostra insuficiente e, ao fim e ao cabo, inútil. Simples assim.
Por fim, o último problema é menor, mas sua dimensão é causadora dos outros dois. É o de ordem estética. As curvas do corpo são claramente distinguíveis entre desejáveis e indesejáveis. Nas mulheres, seios, glúteos, coxas. Nos homens, bíceps, ombros, peitorais. A barriga, por sua vez, é unissexualmente malquista, e inexiste para a moda. Corpos estranhos são os corpos que não se encaixam na moda. A partir daí, o resto da história já se sabe.
Algumas pessoas julgam que eu não seja gordo. Dizem que só tenho uma barriga, o que há de me enquadrar entre outro tipo de gente, suponho. Não enxergo o que dizem. Não sou capaz.