No ano passado, quando ainda estávamos aprendendo o novo significado da solidão de nossos dias, publiquei uma reunião de crônicas sobre a quarentena e todos os fenômenos inéditos que a circunscrevem. O livro, chamado A volta ao quarto em 180 dias – uma brincadeira que mistura os títulos de Jules Verne e Xavier de Maistre – foi recebido pelos meus editores, sempre muito pacientes comigo, não sem uma certa apreensão quanto a sua curta autonomia. Afinal de contas, a pandemia havia começado em março, o livro havia sido publicado em novembro, por quanto tempo ele ainda faria sentido para os leitores? Para a surpresa de todos, a começar pela minha própria, a discussão virou o ano e fez aniversário neste mês de março com o Brasil batendo recordes de mortes diárias – há poucos dias, o consórcio de veículos de comunicação que faz o trabalho que deveria ser do ministério da saúde apontou 2,2 mil vítimas em 24 horas.
A última crônica do compêndio falava de uma vacina que “por enquanto é promessa e de uma imunização de rebanho que não virá sem a queda de muitos corpos”. Seis meses após ter escrito essas linhas, o projeto de imunização do governo continua lento, após uma longa briga de foice burocrática para atravancar insumos importados que poderiam salvar vidas. Novas cepas surgem mais agressivas e ágeis pelos caminhos microscópicos entre um ser humano e outro e quem achou que passaria a pandemia incólume ao vírus está experimentando seus dias de agonia e apreensão. O prefeito de Curitiba, Rafael Greca, depois de fazer todos os contorcionismos legislativos possíveis, teve de admitir a derrota e mandar trancar a cidade mais uma vez, dessa vez sob a égide da bandeira vermelha. Às 20 horas, nossa capital já é uma cidade fantasma e mesmo conveniências ou delivery já não se encontram no fim de um domingo. Nos hospitais, mais conterrâneos agonizam e outros tantos aguardam na fila para morrer com um pouco de dignidade. A vacina demora a vir para todos.
O trabalho me tirou a sensibilidade para a quarentena. A recusa dos meus chefes em fazer home office sob o pretexto da essencialidade de nossos serviços burocráticos e o trajeto diário da casa ao escritório, ao longo dos meses me fez andar por aí com uma impressão vaga de que, à exceção da máscara, nada mudou. Nos bares, nos shoppings, nos bancos e nos calçadões, as pessoas vivem suas vidas. Camus apontou sua teoria do absurdismo a partir de eventos como esse: a capacidade de continuar vivendo como se o absurdo não existisse.
O toque de recolher acontece no contraturno, como se o vírus também tivesse mais coisas para fazer durante o horário comercial. As medidas pela metade terminam de vez com a esperança de melhora e com a confiança na administração pública.
Como o protagonista de O Processo, de Kafka, que, em meio à zona burocrática em que se meteu, continua comendo, dormindo, transando e se preocupando com as mesmas coisas, também eu andei por aí como um herói absurdo, ignorando as valas que se enchem de carcaças. Não como um negacionista, é claro, mas como um encurralado pelo cotidiano. Percebi aí que a autogestão é esmagada pela convenção social quando nada dá uma folga do caos. Entendi como quem pega ônibus lotado todo dia se recusa a aceitar que a praia está fechada: a teoria de Naomi Klein funciona mais uma vez, agora para roubar o lazer do trabalhador, que não entende e se rebela, arriscando ainda mais vidas. O toque de recolher acontece no contraturno, como se o vírus também tivesse mais coisas para fazer durante o horário comercial. As medidas pela metade terminam de vez com a esperança de melhora e com a confiança na administração pública. Seguimos enquanto não morremos.