Tenho um amigo – vou chama-lo de Gui nesta crônica, para preservá-lo do moralismo de um possível leitor incauto – que começou a se cuidar depois que completou 30 anos. Até aí tudo bem, não é exatamente uma atitude autêntica. Ao contrário, é a mais óbvia manifestação de uma tomada de consciência acerca da própria mortalidade. O que me espanta (para além do poder simbólico das efemérides) é a mudança abrupta de um estado ao outro. Mas para isso preciso contextualizar o leitor melhor acerca dos hábitos deste meu amigo.
O filósofo esloveno Slavoj Zizek diz que o politicamente correto, longe de ser um problema para as falhas humanas, não passa de uma autodisciplina que procura oprimir hábitos deletérios. Uma outra forma de totalitarismo, portanto. Há também um caráter pedagógico. Ele comenta isso ilustrando como exemplo um artigo de uma revista que leu durante um voo, no qual os benefícios fisiológicos do sexo são listados. Zizek se pergunta qual é o propósito de se listar os benefícios do sexo para além de um desnecessário incentivo à prática sexual senão uma tentativa de não fazer do sexo um ato de prazer puro. Assim a coisa se estende para o tabagismo e o uso de drogas. O filósofo conta que a justificação para a proibição de cigarros eletrônicos durante voos é estritamente moral-pedagógica. É feio se apaixonar por tais vícios a ponto de exibí-los em público.
Podemos voltar a Gui agora. Gui é um cara extremamente apaixonado pelo que degrada o corpo humano. Enquanto estúdios de yoga fazem lista de espera para possíveis alunos, Gui prefere não sair de casa para beber se estiver sem cigarros, porque, afinal de contas, qual é o propósito de beber sem poder fumar dois maços em uma noite? Serviços de marmita fit e prateleiras de comida orgânica espraiam pela cidade como hifas num Wickbold vencido, enquanto Gui age como um não solicitado garoto propaganda do McDonald’s, saboreando cada mordida em um hambúrguer de três carnes e bacon enrolado em um papel manteiga gorduroso. Churrascos mensais, engradados incontáveis de cerveja em lata, guaraná Cini misturado com vodca Natasha, Gui é todo ele a pulsão da vida pela intensidade sensorial que todo chef especialista em tofu desejaria varrer do mapa. Discípulo do único verso de Horácio que rompeu a barreira da erudição, meu querido amigo passou os primeiros 30 anos de sua vida alheio às preocupações modernas sobre saúde, bem-estar e os benefícios do sexo. Um tanque de guerra hedonista que arrota Jack Daniels com Coca-cola em meio ao silêncio do Tai Chi da Praça do Japão.
Gui é um cara extremamente apaixonado pelo que degrada o corpo humano. Enquanto estúdios de yoga fazem lista de espera para possíveis alunos, Gui prefere não sair de casa para beber se estiver sem cigarros, porque, afinal de contas, qual é o propósito de beber sem poder fumar dois maços em uma noite?
Mais do que uma autoindulgência inconsequente, a rotina de Gui era uma inspiração e um grito de resistência à paranoia da decrepitude física que enche os hotéis mais caros de Paris com cirurgiões plásticos. Até decidir se cuidar, Gui permaneceu impávido como talvez o último ser humano que conheço capaz de se abandonar ao divertimento da carne sem inibições. O glamour do lixo está morto, afinal. Amy Winehouse pereceu aos 27 anos apesar dos conselhos de Keith Richards. Joe Perry e Steven Tyler não são mais os Toxic Twins há pelo menos trinta anos. Todos os comediantes gordos emagreceram e a ópera Carmen foi proibida de ser encenada na Austrália por ter sua cena inicial em frente a uma fábrica de cigarros. O McDonald’s agora vende saladas e frutas e as pulseirinhas power balance venderam como água antes de ter seus benefícios refutados cientificamente. A sociedade de consumo só existe dentro de uma redoma segura, e qualquer consumismo para fora dela já não pode mais ser chamado de social. Gui sabe que precisa se cuidar se não quiser morrer cedo, e agora está prestes a descobrir que a vida pode ser consideravelmente sem sal e sem maionese. Que sobreviva, amigo.