Os misticismos da vida têm pouca serventia pra mim, ou pelo menos assim eu quero crer. Faço essa primeira frase introdutória porque guardo certo pudor intelectual ao rejeitar quaisquer universos que não o da razão. Vamos lá, eis o que eu queria dizer: a primeira carta do primeiro baralho místico que peguei na mão disse algo que ainda ressoa em mim. Sequer lembro do nome do jogo, era algo que sugeria embaralhar e pegar o que seria a resposta do caos para a pergunta guardada na angústia de recorrer a expedientes dessa natureza. A carta dizia que eu sirvo a dois senhores, a Deus e ao demônio. Que buscava uma vida virtuosa, mas que me atirava no lamaçal em razão outras forças. Enfim, uma sugestão de dualidade que, de fato, sempre me atormentou desde que consigo me lembrar.
O escárnio é a minha forma de felicidade, a raiva é a minha forma de tristeza e a melancolia é a minha forma de cansaço. Os demônios de quem me aproximo quando tento reatar com Deus embalam meu sono angustiado.
Fui criado em parte pelos livros, em parte pela rua. Gosto da baixa cultura assim como gosto da alta, e troco cerveja barata por vinho caro assim como troco uma estada de luxo em Paris por um mochilão no sul do Cáucaso. Gosto de ter bons sentimentos, mas é com frequência que deixo os ruins levarem a melhor de mim. Da mesma maneira, produzo arte, ou o que possa ser chamado assim por um público menos exigente, movido por duas forças complementares na energia, mas opostas na intenção: a melancolia e a troça – o que não é difícil de ser constatado por quem me acompanha neste espaço irregular de crônicas semanais. Escrevo sempre no intuito do expurgo, jogo para o mundo o meu próprio mal estar, às vezes em forma de deboche, às vezes em uma expressão mais pura de tristeza. O escárnio é a minha forma de felicidade, a raiva é a minha forma de tristeza e a melancolia é a minha forma de cansaço. Os demônios de quem me aproximo quando tento reatar com Deus embalam meu sono angustiado.
Que os meus dois senhores mantenham em mim a contradição de que preciso para me dizer humano. Grande demais para comportar um só espírito, pequeno demais para dominar a eterna luta de opostos. Que as energias negativas com que produzo possam se transformar fora de mim em algo melhor, e que o riso e o choro sejam os dois lados da mesma moeda. Viver e criar sob o signo da desordem, para sempre, até o fim dos dias. Esse é o meu lema, e o do universo.