Creio que todos, ou quase todos, tinham pelo menos duas respostas, quando criança, àquela clássica inquisição sobre o que ser enquanto adulto. Uma delas consistia num plano de carreira que inevitavelmente acarretaria em respeito profissional; a outra, meramente, era um trabalho menos célebre, sem carreira, com a única finalidade de nos satisfazer nas delícias da rotina. Ator e caminhoneiro. Astronauta e bombeiro. Jogador de futebol e dono de loja de discos. Tive as minhas respostas prontas por um tempo, mas, depois da adolescência, encontrei uma que atendia ao equilíbrio entre fama e anonimato, altruísmo e egocentrismo, rotina e imprevisibilidade: eu queria ser bartender.
Mesmo antes de começar a beber – e comecei tarde, aos 27 anos, por razões que não interessam aqui – sempre fui apaixonado pelo design das garrafas de bebidas. A apreciação estética me levou ao interesse sobre mixologia clássica e nova, às criações que dispunham de uma variedade tão vasta quanto desconhecida e, eventualmente, à figura do bartender, na idealização mais clássica da função: o sujeito de gravata borboleta e colete que atende às angústias humanas com ouvidos atentos e doses saborosas de álcool. Sem comprometimentos, julgamentos morais ou variações no humor, o bom bartender habita na zona cinzenta entre a visibilidade e a invisibilidade, a indiscrição e a discrição, uma entidade monolítica capaz de aplacar um Romeu do segundo ato ou um Tristão da primeira ária. Uma peça sólida que, meramente existindo, escore as ruínas de uma vida líquida que depende cada vez mais das paixões etílicas.
Creio que todos, ou quase todos, tinham pelo menos duas respostas, quando criança, àquela clássica inquisição sobre o que ser enquanto adulto.
Pensei sobre isso nas últimas horas, desde quando descobri que minha bartender favorita do Paradis não trabalha mais por lá há três ou quatro meses, pelo que me disseram – mais ou menos o mesmo tempo em que passei afastado dessa casa. Eu, que nunca fui muito de sair e dançar, e que nunca me atraí por nenhuma vantagem da vida noturna, tinha nela um porto seguro que respondia ao meu eventual enfado com simpatia e que sabia preparar um negroni como ninguém, e do jeito que eu gostava ainda por cima. Quando cheguei na boate no último sábado e não a vi no seu lugar de costume, me senti como uma construção mal-ajambrada de alvenaria estrutural. Comentei com minha namorada e ela, tentando me animar, disse que talvez ela estivesse nos bares da pista de dança, no andar de cima. Nada.
A partir daquele momento, a Paradis passou a ser um lugar um tantinho mais hostil para mim, que, noves fora a indiferença por baladas em geral, jamais me considerei pertencido a qualquer lugar que fosse. No lugar dela, bartenders eficientes e gélidos como alemães em um filme de Michael Haneke. Enquanto minha namorada dançava, onde me refugiaria daquele fuzuê barulhento se não no negroni especial que ela me preparava, na gentileza como me recebia e no dedinho a mais de Campari que me tirava da mesmice? Ao inferno com todo o resto, tragam minha bartender de volta! Peguei um gin tônica e voltei para a pista encarando cada um daqueles olhares estranhos, pilares líquidos como a sociedade baumaniana que podem estar aqui hoje e não mais amanhã.
Talvez o ofício de bartender nunca tenha sido sua principal pretensão. Talvez ela esteja melhor e mais feliz onde está hoje, satisfeita com a certeza de que jamais fez a diferença na vida de quem quer que seja em sua função de regar o público festeiro com álcool. Espero que esteja bem, sim, mas me mortificaria não lhe prestar as devidas honras. Gabi, onde quer que esteja, obrigado por tudo.