O sol do fim da tarde bate na parede branca e emite uma luz alaranjada, morna e amigável na sala. O sol começa a se esconder no horizonte, mas seus raios talvez precisem de um pouco mais de tempo para dar adeus ao dia. A luminosidade é parecida com a aurora, mas não bate em parede alguma de meu apartamento voltado para o oeste. Ainda que batesse, porém, é incontestável que o laranja do arrebol vence o raiar amarelado em qualquer ocasião em que se pese a virtude de ambos.
A luz alaranjada que bate na parede no fim da tarde é nossa única e franca conversa humana com o imortal sol.
A luz que vejo batendo na parede me diz que o sol humildemente cedeu seu protagonismo à união das coisas contrárias. Escuro e claro começam a se entrelaçar numa luz indireta, intimista e preguiçosa. A temperatura diminui enquanto as sombras aumentam de tamanho, e o calor opressivo do dia se torna uma inofensiva brisa quente que nos faz esquecer as preocupações com garrafas de água na bolsa, carcinomas, Caladril, painéis fervilhantes de carro e óculos escuros. Enquanto o sol da manhã é uma opressão que se impõe a cada minuto e nos apressa para a vida, o laranja do fim de tarde é humano como nós – se acredita imortal, mas definha gentil rumo à escuridão e cede lugar ao devir. E nos acalma, nos convida à lentidão de sua descendência. Sem essa luz que bate na parede, não haveria a Bossa Nova, os poemas de Eucanaã Ferraz, o intervalo musical descendente entre um si bemol e um ré menor na doutrina dos afetos, o gosto do chá sem adoçante, as redes de deitar e a revoada das garças. É uma luz que, antes de devolver ao mundo seu mistério, devolve a poesia, a bondade e a reconciliação.
Todo o momento posterior, entretanto, está irremediavelmente perdido na ideia de finitude. O desaparecimento da luz laranja na parede nos lembra do passar do tempo e do fim de mais um ciclo. Alguns ancoram esse memento mori a um único dia, geralmente o domingo, ou à música tema do Fantástico, ou o que quer que os lembre do crepúsculo pessoal que se aproxima. E o momento anterior ainda é nada, uma nesga de escuridão que não somos capaz de enxergar em meio a tanta luz, e uma luz que nos furta a subjetividade, de maneira que nenhum segundo pensamento é direcionado ao onipresente astro rei. Existe apenas um momento em que o sol nos abre sua dualidade, e esse momento aconchegante deve ser apreciado de forma lenta, cayímmica-amadesca, com uma bebida em mãos, e com o espírito leve. Tudo antes e depois disso não permite um diálogo sóbrio com as forças cósmicas. Antes, uma água; depois, quem sabe, um conhaque para ficar emocionado como o diabo. O presente momento, porém, é eterno, waldenesco. A luz alaranjada que bate na parede no fim da tarde é nossa única e franca conversa humana com o imortal sol.