É sábado de manhã. Você não está mais de pijama, já vestiu os shorts e a camisa de ir brincar, mas ainda aproveita os desenhos animados da TV aberta. A programação da manhã é interrompida quando seu pai te chama com um rugido para ir até a garagem. Lá está ele, a caricatura: imponente, precisa e um tanto cômica, como em um quadro do Bruegel. Caixa de ferramentas, a cerveja – que talvez já seja a segunda ou terceira – o capô do carro aberto e uma leve desordem das coisas que sugere uma tarefa além dos meios. Ainda é sábado, ele está feliz por poder dedicar o fim de semana às pendências da casa. Ei-lo, segurando as rédeas do próprio destino e do próprio lar, sem tempo para esperar a visita de profetas e sem disposição para minorar-se diante de um profissional. Marta de Betânia, entretanto, necessita que seu filho segure uma lanterna para iluminar determinada região do motor.
Parece um trabalho simples. O que é segurar uma lanterna diante de tirar o véu da engenharia mecânica da geringonça que leva a família para os passeios? Você segura a lanterna, mas depois de pouco tempo, descobre a tortura da dor isométrica. Os braços fraquejam e a mão involuntariamente passa a iluminar outro lugar. É nessa hora que o pai grita com você pela primeira vez. Grita, mas não te desobriga da função. Aprende-se ali a resistir em condições adversas. O sono, a fadiga nos músculos pouco desenvolvidos que seguram a lanterna, as injúrias, o bafo de cerveja que solta um ar carregado pela frustração da batalha lentamente sendo perdida para a máquina. Raiva contra a máquina, frustração contra a prole. O primeiro choque da formação masculina bruta geralmente começa num sábado de manhã, segurando uma lanterna de shortinho e pensando nos desenhos que está perdendo.
Parece um trabalho simples. O que é segurar uma lanterna diante de tirar o véu da engenharia mecânica da geringonça que leva a família para os passeios?
Você se ilude por um breve instante achando que está fazendo o trabalho direito agora e acredita que a fase da raiva acabou. Desconhece por completo a longuíssima linhagem de crianças que jamais seguraram corretamente uma lanterna para seus pais e acredita ser o primeiro em gerações que fará um trabalho satisfatório, mas enquanto sonha com os louros da aprovação paterna, qualquer coisa que valide a genética da aptidão com automotores, relaxa a mão e ilumina outro pedaço desinteressante. Presta atenção, outro grito lhe pega desprevenido e lhe desperta do sonho bom. Você teme pelas suas funções psicomotoras. Desconhece os exageros e as projeções e acredita ser incapaz de fazer tarefas simples. Pensa nos seus amiguinhos que jogam bola melhor que você, andam de bicicleta mais rápido ou que tiram melhores notas. Sim, há algo de errado. O projeto de criança que estava se desenvolvendo foi ali escancarado em toda sua ineficiência humana. Se ressente da grosserias e pensa em fugir de casa, ser acolhido por um pai menos raivoso, por uma família que respeite suas deficiências. Já se autocompadece imaginando a pitoresca trouxa de roupa amarrada na ponta de um cabo de madeira que carrega em um dos ombros. Então é isso, família, adeus!
O pai percebe que você espreme as lágrimas nos olhos e se enche de sentimentos conflitantes. Tenta pegar mais leve contigo, lembra-se que existe a didática, a pedagogia amorosa familiar, e tenta reparar o erro, se esquecendo por um instante do problema mecânico com o qual se digladiava. Você entende pouco, mas as mãos já tremem o bastante para que seja impossível fazer o trabalho solicitado. Explode no choro diante da amansada paterna, e pede pra ver desenhos. O pai entende e assente. Você volta para o quarto. Na tela, as cenas são felizes, mas o colorido está menos intenso. Você assiste às animações sem alegria, encara a mídia como um mecanismo de cooptação. O sábado de manhã agora tem cores lavadas, e o Pernalonga ondula na fina linha d’água que cobre seus olhos. Você sonhará com lanternas pela primeira vez nessa noite.