Noves fora o problema de Santo Agostinho sobre o tempo, o presente é nossa chaga e nossa cruz. Viver sem planos em época de pandemia requer abnegação, paciência e um controle profundo sobre a ansiedade – uma pandemia anterior e mais perene do que qualquer vírus. Não se pode marcar nada porque não se pode sair, e não se pode querer marcar nada porque não se pode prever o fim disso tudo (supondo que existirá um fim).
Viver apenas o presente, então, o paraíso de qualquer yogue. Basta lidar com os problemas do dia que estão diante dos olhos. No máximo programar um abastecimento de víveres em casa, maratonar uma série ou escolher um dia para lavar a roupa. Mas mesmo tudo isso é força do hábito. A vida em seu ritmo repete o mantra dos pôsteres britânicos de guerra, mas a gravidade aleatória da doença abre a fórceps o coração do cotidiano para enfiar seu carpe diem. Dizem sempre que nunca se sabe o dia de amanhã, mas nunca disseram isso a sério até então. As razões para não abrir uma garrafa de vinho se esfumaçam. A morte espreita, e os bons se vão cedo. A barriga cresce, pode preocupar quem pensa no verão. Mas que verão? As academias tentam reabrir toda semana, dizendo que o esporte é saúde. Mas que saúde? O verão que se aproxima não pede corpos consoantes com os editoriais da imprensa especializada. O verão que se aproxima não pode pedir nada.
Viver sem planos em época de pandemia requer abnegação, paciência e um controle profundo sobre a ansiedade – uma pandemia anterior e mais perene do que qualquer vírus.
O habitante do mundo quarentenado é escravo de um ritmo arcaico, deus poderoso que lhe inflige castigos imensos pelo pecado de parar. A mente se agarra aos planos porque o futuro é a única realidade passível de ser computada. O presente é preenchido com os tradicionais passatempos: televisão, literatura, cozinha, exercícios físicos, uma longuíssima colônia de férias da clausura. Os planos viram imediatos: as próximas horas de forno, os próximos abdominais, o próximo episódio do seriado favorito. O futuro é comprimido e trazido para perto. Um futurinho, pequeno e palpável. O único possível para o amanhã turvo que nos aperta o calo da vida.