Para Henrique Schaefer e Marcel Bely
Há algum tempo, escrevi, neste mesmo espaço, sobre como o punk rock me tornou uma pessoa mais crítica, a ponto de direcionar meu senso crítico contra o próprio gênero que me forneceu o espaço e a energia necessária para formular minhas primeiras perguntas. Como, aos olhos de uma análise mais demorada, boa parte daquele espaço seguro e zeloso ao questionamento se diminuiu a uma estética modista e a mensagens genéricas das mais rasas, sem que nada desse a impressão de comportar em seu estofo musical mais do que dois dedos de densidade intelectual. O punk foi para mim um jacobinismo ao contrário: primeiro fui às ruas, depois me voltei contra aquilo que me fez ir às ruas.
Contudo, um ataque tão direto a algo que já foi o meu grande objeto de paixão exige certos justiçamentos tardios, pois não foi com todo o punk rock que me desencantei. Restaram os honestos, que separo entre três tipos: os festivos, para os quais a mensagem se resume a bebida, garotas, a diversão que se espreme entre os momentos permissivos da vida difícil (arquétipo: Rancid); os moleques, dotados do estofo intelectual necessário, mas que trocam a concisão da crítica pela jocosidade perene (arquétipo: NOFX), e os realmente intelectualizados, aqueles que estimulam o pensamento crítico ou, ao menos, algum tipo de reflexão não-generalizada em suas músicas. É sobre este último e seu arquétipo que desejo falar. Ainda me encanto pelo que o Bad Religion escreveu.
Deixando de lado a produção mais recente da banda, por pura falta de assimilação de conteúdo de minha parte, o Bad Religion, em sua sistemática filosófica, não nega a mudança do mundo por meio da ação direta, mas comporta a sensação difusa do homem moderno, esmagado pela informação, pela falta de propósito e pelos estímulos anti-intelectuais que recebe de todas as partes. “Crawl from underneath it/ Lately I’ve come/ To see the solution/ And it begins with me/ But I’m so fallibly human/ I’ve picked the lot”, resume a voz rouca de Graffin em “My Poor Friend Me”. “The lot”, aqui usada como uma derivação da expressão idiomática em inglês (“the pick of a bad lot”), ressalta o amargor de ser dotado com o aufklärung na mesma intensidade em que as forças de minoridade do pós-modernidade tiram a capacidade de ação. Eis a vida: ou isso ou ser o homem moderno puro, o “patético exemplo da herança orgânica da Terra”, como cantam em “Modern Man”.
Deixando de lado a produção mais recente da banda, por pura falta de assimilação de conteúdo de minha parte, o Bad Religion, em sua sistemática filosófica, não nega a mudança do mundo por meio da ação direta, mas comporta a sensação difusa do homem moderno, esmagado pela informação, pela falta de propósito e pelos estímulos anti-intelectuais que recebe de todas as partes.
Ainda é notável como a banda, consciente do poder mesmerizante de suas palavras provocativas, tenta se blindar de possíveis messianismos involuntários. “I don’t belive in self important folks who preach/ no Bad Religion song can make your life complete/ prepare for rejection/ you’ll get no direction from me”, cantam em “No Direction”. É como se tratassem suas próprias mensagens como uma isca a ser pescada por mentes mais inclinadas à reflexão e, dessa maneira, catalisassem pensamentos mais autênticos.
Nisso se encontra, acredito, o cerne da questão que o Bad Religion sistematicamente propõe em todas as suas músicas: dada a propensão ao pensamento de rebanho e a desinformação do acúmulo de informação, o que se pode fazer para provocar uma mudança legítima e rastreável na experiência? As letras parecem responder de maneira indireta: pouca coisa. Lançar questionamentos, incomodar com a mensagem, fazer germinar o espírito crítico em cada punk que se dispõe a ouvir a música com mais sensibilidade. Continuar a pensar e continuar a questionar, e fazer do questionamento um dominó, uma cadeia de sucessões intelectuais, a história do pensamento como força transformadora do mundo. Parece ser um bom caminho. Parece ser uma boa banda para se ouvir.