Não há um dia em que à imaginação não acometa o vislumbre de como seremos daqui para frente. E, talvez mais importante, de como nos lembraremos dessa época. É óbvio que este estado de imobilidade é passageiro, e que algo na história pode ser acelerado por essa crise. Sendo assim, o que seremos? Que tipos de psicoses, paranoias e perversões passaremos de forma atávica a nossos filhos? Psicoses, paranoias e perversões que nesse exato momento estão brotando em nosso inconsciente coletivo constituirão uma nova geração de jovens trabalhadores no futuro que, por sua vez, moldarão o mundo ao sabor de suas próprias realidades subjetivas, mas também à sombra de nossos erros.
A AIDS moldou a maneira da minha geração de ver o sexo. Antes dela, não havia tanto uma noção de dano e perigo mortal no sexo. Já existiam as doenças venéreas, mas nenhum sexo casual poderia ser uma sentença de morte como passou a ser depois que Larry Clark escancarou a realidade no filme Kids. O caso Mônica Levinsky, as denúncias do movimento #metoo e os estudos sobre a via sistêmica do patriarcado na cama deram ao sexo também uma dimensão de perigo social. Exposição, culpa e politização do sexo.
Não há um dia em que à imaginação não acometa o vislumbre de como seremos daqui para frente. E, talvez mais importante, de como nos lembraremos dessa época. É óbvio que este estado de imobilidade é passageiro, e que algo na história pode ser acelerado por essa crise. Sendo assim, o que seremos?
Perguntei a um amigo meu, gay, e usuário contumaz do serviço de michês, se ele não temia ser morto por um deles, como um famoso escritor de Curitiba na época, assassinado com uma facada por conta de um valor irrisório. Ele disse que temia, muito mais do que a facada do michê, a filmada do michê, uma exposição chantagista que poderia por em risco sua carreira e imagem social. Ele não está errado. Para nossa geração, o sexo é, antes de tudo, um momento de vulnerabilidade atroz, com infinitos desdobramentos trágicos. Não espanta que haja uma geração inteira de japoneses para quem o sexo é excessivamente trabalhoso e nascente de frustrações e traumas para a vida, de modo que preferem seguir voluntariamente celibatários.
Se coubesse a mim a conjectura, diria que seremos assim no futuro, mas em relação aos encontros sociais. A responsabilidade de se apresentar sadio diante dos outros, o medo geracional de aglomerações em contraposição a uma maior apreciação do próprio lar, a vontade de estar junto em contraste com a necessidade de estar só. Seremos as nossas próprias possibilidades de sermos ilha, e buscaremos o encontro como quem constrói pontes intransponíveis.
Novos pudores em relação a abraços e apertos de mão, novos estigmas quanto a manias de toque e vícios de insalubridade. Seremos, quem sabe, mais limpos e mais medrosos. Temerários e vulneráveis pelo enfraquecimento da imunização de manada. Talvez nosso medo nos torne paradoxalmente mais propensos a uma nova pandemia. Mas talvez também fiquemos mais sábios depois disso tudo. Sábios e paranoicos daqui pra frente. O futuro é sem sal.