Ontem, as comemorações da Páscoa coincidiram com a celebração prática do dia da mentira. Julgo que o primeiro de abril, que tem suas origens nos ritos pagãos, seja uma data mais poderosa do que a ressurreição do nosso salvador porque guarda em si a capacidade e a liberdade de crítica que dogma nenhum jamais conhecerá — a simples coincidência de datas sugere o engrandecimento do dia pagão sobre o feriado católico, alguém perceberia. Some-se isso ao fato das duas celebrações se encontrarem em um domingo, o dia santo para a igreja e pagão para o proletário. O melhor e o pior da semana ao mesmo tempo, que se metamorfoseia em nossos sentimentalismos de trabalhador como em uma escala de cores que corre em direção a tons mais sombrios com o passar das horas.
Temos então, nesta feliz conjunção de calendário, uma luta miltoniana de oposto. De um lado, Cristo. O alfa e o ômega, o divino ser supremo, a verdade sobre o mistério da experiência personificada. Do outro lado, a mentira. Nosso primeiro talento cônscio, o distintivo moral da nossa humanidade, o abuso do conceito de fé e a perversão da palavra. Se a verdade tem seu valor absoluto no imperativo categórico kantiano, a mentira tem seu valor comprovado dia a dia, sem que ninguém a tenha rotulado com um precificador antes do embate. É com a mentira que a verdade se comprova, e é com a verdade cotidiana que a mentira encontra seu lugar no mundo, fazendo vítimas nas brechas verossímeis da vida. Que haja um dia para celebrar uma imoralidade inteiramente humana — falo aqui da mentira dita, a ludibriação intencional, que difere de métodos potencialmente mentirosos em sua essência de sobrevivência animal, como a camuflagem e o mimetismo — é um sinal sadio de que abraçamos, lado a lado com nosso desejo de santificação, aquilo que nos faz permanentemente terrenos. Regidos pelo signo da mentira desde a primeira infância, descobrimos cedo demais esse mecanismo de fácil operação que milagrosamente nos livra de qualquer inconveniente que a verdade possa nos trazer. É claro que fiz a lição de casa, mas meu cachorro a comeu. Não, não estou mentindo. E então fazemos algo deplorável depois da mentira: rimos às escondidas.
Ontem, as comemorações da Páscoa coincidiram com a celebração prática do dia da mentira. Julgo que o primeiro de abril, que tem suas origens nos ritos pagãos, seja uma data mais poderosa do que a ressurreição do nosso salvador porque guarda em si a capacidade e a liberdade de crítica que dogma nenhum jamais conhecerá — a simples coincidência de datas sugere o engrandecimento do dia pagão sobre o feriado católico, alguém perceberia.
Beckett disse que rimos daquilo que nos parece falso, imoral ou absurdo, de modo que dificilmente haveria riso no paraíso. Porque o riso é uma consequência da mentira, e porque através dele castigamos os costumes — dogmas inclusos —, este é um comportamento que desde já se coloca no espectro oposto ao imperativo categórico, como um pecado ainda mais terrível do que a mentira. Em Gênesis 18, Sara mente a Yahweh, quando ri diante da notícia de que, já muito avançada em idade, dará um filho a Abraão. O versículo 14 mostra que um mal estar foi criado, já que Deus questiona o riso de Sarah: “Haveria coisa alguma difícil ao Senhor? Ao tempo determinado tornarei a ti por este tempo da vida, e Sara terá um filho”, enquanto o seguinte mostra que a coisa ficou feia: “E Sara negou, dizendo: Não me ri; porquanto temeu. E ele disse: Não digas isso, porque te riste”. A mentira parece algo menor, inócuo, diante de rir da Verdade, aqui com a letra maiúscula que a distingue das outras, menos verdadeiras.
Sejamos sempre como este último domingo. Santos-pagãos, beatos e mentirosos, reservados e imorais. Que possamos guardar o primeiro de abril esse ano como guardamos a dualidade do próprio ser: sem levar nada a sério.