Poucas horas depois da vereadora Marielle Franco ser assassinada, um boato correu na internet. Dizia que ela tinha sido amante de Marcinho VP. Para ilustrar a fofoca, uma foto mostrava uma mulher pobre sentada no colo de um homem também pobre. Nem a mulher parecia Marielle Franco, nem o homem da foto era Marcinho VP. Da mesma forma, o modus operandi de forças ocultas que conspiram a favor de assassinatos de pessoas negras e pobres se perpetuou nos casos do menino Marcus Vinicius, de 14 anos, assassinado em seu uniforme de colégio pela polícia, e também de Maria Eduarda, de 13 anos, morta em Acari no ano passado. Em ambos os casos, fotos de outras pessoas com armas na mão viralizaram pela internet na intenção de validar a ação de seus assassinos.
A empatia de um ser humano com outro ser humano é a única qualidade verdadeiramente capaz de nos salvar do caos profundo que o colapso do capitalismo moderno sedimenta dia a dia na malha social.
Há um problema de ordem dupla em todos esses casos. O primeiro é óbvio: há um movimento expressivo de acobertamento criminal quando a vítima faz parte de um substrato marginalizado da sociedade que não se demora a manifestar em nenhum caso. Montagens, fotos falsas, boatos, surgem antes mesmo que a notícia tenha tempo de ser digerida pela população. O impulso etnocida encontra validação no excesso das forças autoritárias do Estado nesses casos, e ambas forças trabalham juntas para matar e sair impune. O segundo é um pouco mais delicado e de ordem íntima, mas, de certa maneira, encontra seu respaldo na consequência lógica do primeiro: os boatos e as fotos só viralizam porque a) queremos acreditar na justificação dos atos e b) não há distinção clara entre duas pessoas negras ou pobres aos olhos da sociedade. Duas meninas, uma segurando um fuzil e outra morta, são a mesma pessoa em uma conclusão irrefletida por parte de quem se dispõe prontamente a compartilhar a boataria. Mais do que o apagamento e o assassinato de uma parte expressiva da população do país, sem a indiferença de quem não se dispõe sequer a olhar atentamente para um rosto a limpeza étnica jamais seria possível. Não é necessário ser bom fisionomista, basta olhar. Falhamos em simplesmente olhar.
A empatia de um ser humano com outro ser humano é a única qualidade verdadeiramente capaz de nos salvar do caos profundo que o colapso do capitalismo moderno sedimenta dia a dia na malha social. Ela é composta de várias atitudes, mas começa em um olhar. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara, dizia o escritor em uma fábula alegórica sobre a indiferença cega da sociedade. Se não somos cegos, o que andamos fazendo com os nossos olhos?