O segundo cachorro era grande e atrapalhado, mas muito bonito para um cachorro que cresceu na rua. Era completamente negro, sem nenhuma mancha colorida no corpo, e muito ossudo também. Quando não corria atabalhoadamente em direção a qualquer lugar, despertava o maior dos pavores por parte daqueles que não o conheciam. Não era necessariamente manso, mas também não era hostil. Sua imagem de cão dos diabos permaneceu mesmo assim, devido a seu porte e sua cor, e principalmente por seu latido gutural e rouco, que parecia não ecoar em lugar nenhum e soava como madeira pesada rolando sobre madeira pesada. Tinha orelhas pontudas, um focinho curto e dentes enormes, pelos quais escorria baba sempre que rosnava para alguém ou alguma coisa. Tivera o rabo cortado ainda filhote, e o exercício do dia a dia lhe deu um condicionamento físico invejável, com músculos amontoados despontando da junção das patas dianteiras com o peito. Uma verdadeira máquina mortífera, alguns diriam, mas tudo o que Zorba tinha de mau parecia se desintegrar no ar no momento em que se punha a correr. Nunca aprendera a fazê-lo direito, sempre antecipava o movimento de uma das patas e por pouco não se embolava em seus próprios movimentos. Quando abria a boca e botava a língua para fora, piorava. Parecia um cachorro abobalhado e não o Cérbero de uma cabeça que todos temiam. Zorba parado era um colosso. Em movimento, era uma locomotiva cômica.
Para sermos mais precisos, podemos dizer que ele cresceu em uma situação de quase abandono, que é como a grande maioria dos cachorros de rua vive ainda hoje. Zorba fora parcialmente acolhido pelo dono de um armazém de rua, um tipo de estabelecimento que foi lentamente devorado pelos grandes empreendimentos dos centros urbanos e atualmente inexiste para todos os efeitos. O pequeno proprietário foi quem lhe batizou, quando apareceu ainda filhote na frente de sua loja, em homenagem ao célebre personagem de um famoso ator de quem gostava. Zorba fora deixado na casa em que nasceu quando seus donos se mudaram. Não queriam que o filho, então com oito anos, se apegasse ao bicho fadado ao grande porte e inadequado para a vida em apartamento que desfrutariam dali em diante.
Para sermos mais precisos, podemos dizer que ele cresceu em uma situação de quase abandono, que é como a grande maioria dos cachorros de rua vive ainda hoje.
Zorba, ao perceber a solidão da casa vazia – quase ao mesmo tempo em que se percebia vida – permaneceu candidamente ainda um tempo onde estava antes que a fome lhe botasse as patas para trabalhar. Antes disso latiu para os sons que vinham da rua, e depois chorou a ausência humana. Apenas muito depois, ao ser negado qualquer resposta, começou a andar. Com custo, conseguiu achar a saída do terreno para a rua, e não andou muito. Parou na soleira da porta do armazém que seria seu albergue para a vida. O dono, um japonês franzino, de cabelos grisalhos, cavanhaque e voz fina, acolheu o bicho sob s
eu teto. Poucos seres vivos são mais capazes de despertar sentimentos virtuosos nos homens quanto filhotes de cães. Há algo na evolução ecológica que criou uma relação de interdependência entre os dois. O cachorro, ao entregar o destino de sua espécie na mão do homem, livrou-se do trágico destino dos outros canídeos e tornou-se por fim um parasita do afeto humano.
Assim viveu Zorba e seu quase dono. Dormir lhe era permitido com mais segurança durante o dia, quando a prancha de papelão estendida próxima à entrada da loja era vigiada, e um pode com água e um pouco de ração sempre podiam ser encontrados ali perto. À noite, entretanto, Zorba estava por conta própria, como compete à grande maioria dos animais que vivem longe dos domínios das cidades. O japonês fechava a porta do armazém e o cachorro saía junto com ele, como se trabalhasse ali também. Às vezes seguiam por caminhos separados, e às vezes Zorba insensivelmente seguia seu benfeitor por algumas quadras antes de embicar em uma esquina estranha e ganhar a noite. Era aí que saía e tentava explorar a cidade ao mesmo tempo em que tentava permanecer invisível para os eventuais transeuntes que encontrava. Durante a madrugada, qualquer encontro era potencialmente violento, já que a maioria das pessoas que passavam por Zorba por aquele horário compartilhava uma estranha vontade de fazer coisas grandiosas com suas madrugadas, e de alguma maneira maltratar aquele animal era considerada uma coisa grandiosa. O medo de Zorba não durou muito tempo. Em poucos meses, cresceu e se tornou um cachorro grande demais para despertar a fraqueza de caráter dos bêbados e desocupados de ocasião.
A presença de Zorba, já adulto e amedrontador na soleira do armazém todos os dias, deve ter intimidado um sem número de ladrões que nunca incomodaram aquele patrimônio em específico. Um tenaz mal-intencionado, porém, resolveu que cachorro nenhum o impediria de roubar o estabelecimento e tratou de envenenar o cachorro. Atitude desnecessária, Zorba nunca ficava perto da loja depois que seu dono a trancava. Entre ser um cão vadio e um cão de armazém, acabou morrendo por bandeira nenhuma no fim das contas. Foi num final da tarde em que a rua estava mais deserta do que o normal e o japonês estava entretido com as pequenas esculturas de palha e madeira que gostava de fazer quando o movimento era pouco que um pedaço de carne com vidro moído e veneno de rato foi discretamente jogado junto do papelão onde Zorba aguardava o fim do expediente. O futuro ladrão do lugar arremessou a armadilha enquanto se caminhava para fazer uma compra qualquer, um pretexto para estudar o local antes de pilhá-lo. Comprou um maço de cigarros e dois chicletes de menta e saiu de cena, esperando a noite cair.
O japonês apenas percebeu Zorba agonizando depois de passar o cadeado no portão de metal. Encontrou-o onde sempre estava, espumando sangue pela boca em silêncio. Tremia muito e havia urinado em cima do papelão. O homem se desesperou e gritou por socorro, mas não havia ninguém na rua naquela hora. Tentou abraçar Zorba para contê-lo, mas ele ameaçou mordê-lo em um movimento brusco e desesperado de cabeça, e o que era para ser um gesto de afeto tardio – já que nunca ousara dar nenhum tipo de carinho para o cão em vida – se tornou uma imobilização forçada e sem muito efeito prático. O sangue que começou a pingar do ânus do cachorro caiu sobre a calça jeans do lojista e aos poucos, Zorba foi parando de se mexer. Pendeu a cabeça para baixo e num instante tudo havia terminado. Tombou morto nos braços do primeiro e último humano que lhe dignou um afago. O dono do armazém, contrariado, não chorou a morte do cão, que tinha pouco mais do que quatro anos, e antes de tudo, quedou-se perplexo com o caráter súbito e misterioso de sua morte. De uma estranha maneira, não se sentiu mais tão responsável pelo corpo do cachorro sem vida, e chamou a prefeitura para recolhê-lo. Apenas quando, na manhã seguinte, descobriu que sua loja havia sido roubada durante a noite, juntou as peças do quebra-cabeça óbvio e uma centelha de culpa desencadeou um remorso desproporcional no homem, por ter incumbido o centro de zoonoses dos restos mortais de Zorba.
A polícia não demorou muito até chegar no ladrão uma vez que havia uma descrição detalhada fornecida pelo japonês melancólico. Ele foi preso e solto poucos meses depois, por ser réu primário. Chegou a invadir três casas antes de se tornar reincidente, e matou mais um casal de rottweillers da mesma forma que matou Zorba, e com o mesmo objetivo também. Perguntado na delegacia, disse que não tinha nada contra os cachorros, e se tratava apenas de uma medida preventiva. Quando perguntado sobre por que não preferia desistir do roubo quando sabia que havia cães guardando o imóvel, respondeu apenas que bicho nenhum o intimidaria.