Abro a porta. O vidraceiro entra, carregando com cuidado o pedaço de vidro que substituirá a minha janela quebrada. Não usa luvas, não traz mais do que um ajudante calado e uma bolsa com algumas ferramentas de baixa tecnologia – a mais avançada é o estilete com querosene que usa para recortar o que virá a integrar a minha casa depois da devida instalação.
O esquadro de alumínio é velho e está recheado de massa seca. Retirá-lo é um esforço a parte. “Que trabalho difícil o seu”, comento enquanto observo o vidraceiro e seu ajudante tentando remover peças do esquadro e pedaços de massa grudados pelos anos de sol da tarde. O sol desta tarde é igualmente impiedoso, e cega os olhos dos homens que trabalham com força e com vidro. “Geralmente não é difícil, é a sua janela que é velha”, responde em um tom firme sem contudo denotar uma hostilidade pela empreitada extra. Mas do sol, reclamava. “Por que esse planeta ainda não acabou? Já tivemos uma era do gelo, já caiu bomba atômica, já caiu meteoro e essa merda ainda tá aqui”, resmunga consigo mesmo enquanto contempla o sol no horizonte com os olhos apertados. Ver um trabalhador manual questionar raivosamente o sentido da vida terrestre em meio a uma tarde de sol é algo que mexe com os mecanismos internos da própria sociedade, penso rapidamente sem refletir sobre um significado mais profundo disso.
A janela dá trabalho. Só um dos lados corre, e isso atrapalha a colocação do vidro, justamente de sua metade imóvel. Sem ventosas especiais, sem luvas, com nada além de chaves de fenda que eu mesmo empresto e um martelo surrado que eles tiram da bolsa, resolvem o problema de encaixá-lo no esquadro mais ao fundo. “Não, animal, segura no alumínio, e não no vidro”, repreendia o vidraceiro o seu ajudante de tempos em tempos em frases e pequenos insultos similares. Tiram então uma sacola plástica transparente com uma massa. O vidraceiro explica a composição. “Gesso, óleo de linhaça e secante, uma coisa arcaica que só, mas algumas janelas como a sua ainda usam isso”. Mais baixa tecnologia empregada na minha janela de baixa tecnologia.
“Taí um vidraceiro que ficaria bem amigo de alguns filósofos franceses da primeira metade do século 20. Carregar peso, questionar a existência e beber vodca.”
Enquanto passa a massa na janela, espia a garrafa de vodca em cima da mesa e comenta: “Mato uma dessas por noite quando eu saio”. “Gosta de beber então?”, faço uma pergunta redundante para continuar azeitando nossa relação efêmera com diálogos que fazem pouco mais do que preencher o ar. “É o que tem pra fazer na vida, né?”. Taí um vidraceiro que ficaria bem amigo de alguns filósofos franceses da primeira metade do século 20. Carregar peso, questionar a existência e beber vodca. O contraste sugere uma extração de algum romance russo ou algum personagem de filosofias pessoais de Jack London. Mas é de carne e osso, e está terminando de instalar a minha janela. Diz, por fim: “Deixa secar agora que é só alegria depois”.
Sim, sim, uma janela nova, não quebrada, é uma alegria depois de um certo tempo olhando para a antiga. Fico com vontade de saber mais sobre a visão de mundo desse vidraceiro niilista em potencial, mas ele apenas cobra seu preço e se manda, com seu ajudante calado que carrega uma bolsinha com poucas coisas. Apenas as coisas rudimentarmente indispensáveis.