Fala-se muito – talvez até além da competência exigida para se falar – sobre a vida da mente, o desenvolvimento infantil e as boas influências para a formação intelectual da criança. Isso em uma época que o que vale mesmo é a psicomotricidade, a coordenação motora, as habilidades que estimulam as áreas do cérebro que possibilitam uma agilidade cerebral interessante para o mundo pós-moderno, movido a café e outros estimulantes, e conduzidos por carros, metrôs e motocicletas alucinadas. Mas no meu caso, diante de uma autoanálise freudiana, posso dizer com tranquilidade que o fator preponderante para o meu desenvolvimento intelectual consciente – uma das primeiras grandes decisões tomadas pelo cronista criança – foi o filme Kingpin – Estes Loucos Reis do Boliche, de 1996, dos irmãos Farrelly, gênios do cinema de comédia que dominaram a cena dos anos 1990 concomitantemente com os irmãos Coen, os irmãos Wayans e os irmãos Taviani (ok, esses não).
O filme tem um enredo mais complexo do que a minha explicação, mas em linhas gerais, tem como protagonista um campeão do boliche treinado desde criança para dominar o esporte e que, depois de algumas decisões erradas tomadas em sua carreira, é atacado por gângsters que mutilam sua mão de jogador. Aquele filme sobre boliche (um esporte não muito atlético, por sinal) ensinou uma lição importante para a criança de 10 anos que já fui um dia: a falibilidade do corpo é pior do que a decadência da mente. Enquanto a última não pode ser contornada em quase nenhum aspecto, a primeira pode devastar uma vida que dependa desse relógio suíço desregulado disfarçado de criação divina perfeita.
Aquele filme sobre boliche (um esporte não muito atlético, por sinal) ensinou uma lição importante para a criança de 10 anos que já fui um dia: a falibilidade do corpo é pior do que a decadência da mente.
Em que se pese minhas então poucas habilidades para o esporte – judô, natação, futebol e basquete, todos eles passaram pelo desajeito de minha presença física nesse universo – decidi por bem tentar fazer meu sustento a partir do engenho dos meus miolos e nunca, nunca, ser dependente de qualquer membro do corpo humano que possa ser mutilado por gângsters.
É claro que um Neymar que receba uma fratura exposta que o aposente de vez do futebol poderá viver do patrimônio acumulado até então e fazer ainda um punhado de propagandas de gilete e outras besteiras, e um Casagrande que tenha usado drogas demais para continuar inserido na sociedade de forma decente poderá desfrutar a glória de ser um comentarista de partidas se tiver boas relações, mas é óbvio que este mundo não é feito de raros exemplos de superação e sorte, mas de consequências lógicas e planos que dão errado. Também não é possível desconsiderar que o conhecimento traz medo e angústia, e que isso pode ser uma muleta psicológica para situações bem mais acomodadas do que simplesmente ter que explicar por meu irmão de sete anos a razão pela qual eu não gosto de montanhas-russas. Mas sei também que atletas, artesãos e cirurgiões de mãos firmes têm suas questões internas, sabe-se lá com que frequência, e sabe-se lá se intelectualmente amparados para contorna-las.
Todos estão sujeitos, e ninguém está a salvo. O dia em que o Alzheimer chegar, entretanto, estaremos todos condenados. Até lá, conto com a minha capacidade de acumular repertório, estabelecer pontes entre informações diferentes e interpretar de maneira correta as ideias que recebo. Se também nisso acabar falhando, será porque a vida, já lhes disse, não é feita de superestrelas. O treinamento, pelo menos, é menos doloroso.