Assim como outras concepções teóricas complexas, o termo realismo mágico possui múltiplas definições passíveis de debate, desacordo agravado pelo fato de que essa classificação abrange uma vasta gama de autores e movimentos artísticos em múltiplos países, atuando em diferentes décadas do século XX até os dias de hoje.
Em seu livro Magic(al) Realism (2013), a pesquisadora Maggie Ann Bowers categoriza os três principais termos utilizados na bibliografia anglófona: magic realism (do alemão Magischer Realismus), marvellous realism (do espanhol lo real maravilloso) e magical realism (do espanhol realismo mágico). Os termos dizem respeito a três períodos e perspectivas diferentes.
O primeiro deles, Magischer Realismus ou magic realism, foi proposto pelo crítico de arte alemão Franz Roh para referir-se a uma nova forma de pintura, que classificou também como “pós-expressionista”, surgida na Alemanha durante o período da República de Weimar. Roh preocupou-se em salientar as diferenças entre o Magischer Realismus de outro movimento que lhe foi contemporâneo, o surrealismo. A obra crítica de Roh chegou à América Latina por meio de uma tradução em espanhol e influenciou escritores como o guatemalteco Miguel Ángel Asturias.
O real maravilhoso
O segundo termo, lo real maravilloso, surgiu na América Central na década de 1940, época em que diversas nações latino-americanas buscavam expressar uma consciência distinta de seu legado europeu. Dois nomes de relevância desse período são o escritor suíço-cubano Alejo Carpentier e o venezuelano Arturo Uslar-Pietri.
Assim como outras concepções teóricas complexas, o termo realismo mágico possui múltiplas definições passíveis de debate.
Carpentier é amplamente considerado o fundador do realismo mágico latino-americano e utilizou o termo lo real maravilloso para referir-se a um conceito que poderia representar os aspectos singulares da América Latina, em toda sua diversidade cultural e étnica. Buscou dissociar o conceito da definição de Franz Roh, que considerava excessivamente artificial, e definiu o real maravilhoso como “o legado da América Latina”.
Contudo, os postulados de Carpentier podem ser considerados uma tentativa de territorialização do imaginário por parte do autor. Apesar de estar amplamente associado à literatura latino-americana, o realismo mágico, como modo narrativo, não pode ser delimitado por barreiras geográficas. De fato, o crítico espanhol Angel Valbuena Briones propõe que o realismo mágico seria “uma tendência universal, inerente à existência humana” (1969).
O boom latino-americano
A publicação do ensaio Realismo mágico na Ficção Hispano-Americana, do crítico Angel Flores, em 1955, resultou em um renovado interesse pelo realismo mágico no território latino-americano. Entre os estudiosos do realismo mágico, Flores é dissidente ao considerar o escritor argentino Jorge Luis Borges como o primeiro realista mágico da América Latina.
Nesta “segunda onda” do realismo mágico latino-americano, surge o termo que predomina no círculo crítico até os dias de hoje: realismo mágico (em espanhol) ou magical realism, referindo-se a um modo narrativo em que os acontecimentos mágicos são relatados de forma quotidiana, realista, ou como definem as pesquisadoras Wendy Zamora e Louis B. Faris, um modo em que “o sobrenatural não é algo simples ou óbvio, mas é de fato algo ordinário, um acontecimento do dia a dia – admitido, aceito e integrado na racionalidade e materialidade do realismo literário” (1995).
Foi neste terceiro período que o colombiano Gabriel García Márquez publicou a obra que se consolidaria como a principal referência do realismo mágico latino-americano, Cem Anos de Solidão (1967) – e é também em torno desse período que escrevem os principais expoentes do realismo mágico brasileiro, o mineiro Murilo Rubião e o goiano José J. Veiga.
Disrupção narrativa
Falar de “realismo mágico”, portanto, é falar de fenômenos diversos ocorridos em diferentes espaços e períodos, mas com claras relações de articulação entre si e entre outros movimentos artísticos e vertentes literárias que lhe foram contemporâneos.
Desde esse chamado boom do realismo mágico latino-americano, impulsionado pela popularidade internacional da obra de García Márquez, o terceiro termo tornou-se o mais recorrente, e este modo narrativo foi adotado nas mais diversas nações – em especial naquelas em que o legado colonial e/ou do imperialismo se mostra mais presente em diversas esferas da sociedade.
Ao mesclar a essência oposta dos dois termos que formam esse oxímoro (o mágico e o real), estabelecendo uma terceira perspectiva, o realismo mágico torna difusa a distinção entre dois domínios contrastantes, e por isso é frequentemente considerado um modo narrativo especialmente disruptivo. A multiplicidade de possibilidades que o realismo mágico oferece é particularmente atraente para autores de culturas consideradas “às margens”.
Essa liminaridade inerente ao realismo mágico, em todas as suas formas de expressão, é um fator de grande relevância para sua definição, principalmente por se tratar de uma das razões pelas quais esse modo narrativo parece ser tão adequado à literatura de ex-colônias, às margens da tradição literária eurocêntrica.
Ainda, conforme demonstra sua genealogia, o termo “realismo mágico” carrega uma conotação inerentemente interartística, uma vez que pode ser aplicado às mais diversas artes e mídias, variando especificamente de acordo com as limitações e o potencial específico de cada meio.
Na próxima semana, dando continuidade a este tema, falaremos um pouco sobre o universo ficcional de Murilo Rubião, um dos principais expoentes do realismo mágico no Brasil.