Quem hoje acompanha as tendências da cultura pop poderia arriscar afirmar que a “Era de Ouro” da ficção científica nunca acabou. Filmes como Ela, Ex Machina e A Chegada redefinem os limites do sci-fi no cinema contemporâneo, enquanto séries televisivas como a antologia Black Mirror, a irreverente animação Rick and Morty e o hit nostálgico Stranger Things apresentam as múltiplas facetas do gênero a uma nova geração de espectadores, que também estão redescobrindo Star Trek, Battlestar Galactica e Doctor Who.
Na literatura, a ficção científica continua florescendo, encontrando solo fértil em novos países e culturas, explorando a quebra de paradigmas contemporâneos e as últimas tendências políticas e tecnológicas.
Não é difícil apontar alguns dos principais motivos por trás dessa renascença da ficção científica na cultura mainstream. O sucesso do sci-fi na era Netflix é reflexo de uma sociedade fascinada pelo desenvolvimento tecnológico desenfreado e suas ramificações políticas, econômicas e sociais. Ainda, contrariando as expectativas de analistas de tendências no início da década, o geek permanece cool. A cultura “nerd” ainda vende, e vende muito – e o sci-fi sempre foi um de seus pilares principais.
Na literatura, a ficção científica continua florescendo, encontrando solo fértil em novos países e culturas, explorando a quebra de paradigmas contemporâneos e as últimas tendências políticas e tecnológicas. No Brasil, contudo, a seleção de obras traduzidas disponível nas livrarias ainda está muito aquém da ampla gama de livros em idioma estrangeiro que ainda não foram publicados no país.
Enquanto os clássicos seguem ganhando novas edições brasileiras (merecidamente, diga-se de passagem), muitos novos autores são negligenciados, mesmo quando são laureados com as maiores premiações do gênero, como os prêmios Hugo, Nebula, Locus e Arthur C. Clarke.
Para preencher um pouco dessa lacuna, A Escotilha traz uma seleção de cinco obras publicadas na última década que precisam ser traduzidas para o Brasil. Confira!
‘Moxyland’ – Lauren Beukes
A escritora sul-africana Lauren Beukes domina o uso de múltiplos pontos de vista e de diferentes níveis de linguagem (do formal ao mais atual coloquialismo), criando verdadeiros caleidoscópios narrativos carregados de temáticas contemporâneas. A voz característica da autora é o ápice do cool: Beukes entende, como ninguém, o que as novas gerações realmente pensam – e como elas falam. Iluminadas, sua obra mais completa, está disponível em português pela Intrínseca, mas seu romance de estreia, Moxyland, ainda não foi traduzido para o Brasil.
Atualizando o cyberpunk de William Gibson para a geração dos smartphones e mídias sociais (rendendo-lhe elogios do próprio Gibson), Lauren Beukes retrata uma sociedade quase totalitária em um futuro próximo na Cidade do Cabo, mesclando as tendências da cibercultura a um relato extremamente consciente da contracultura sul africana. Para fãs de Neuromancer e Nevasca, Moxyland é uma leitura obrigatória.
‘Embassytown’ – China Miéville
China Miéville é um dos mais versáteis e criativos escritores de ficção especulativa contemporânea. Atuando majoritariamente dentro do New Weird, movimento que ajudou a estabelecer, Miéville tem um único livro puramente sci-fi entre os nove romances publicados: Embassytown, obra vencedora do prêmio Locus para melhor romance de ficção científica de 2012 e aclamada pela crítica britânica como um dos melhores retratos fictícios de conceitos linguísticos complexos.
Tratando-se de Miéville, grande arquiteto de mundos, a ambientação de Embassytown é ímpar, e o livro traz excelentes releituras de conceitos clássicos da ficção científica como o hiperespaço, as viagens FTL (mais rápidas que a luz) e a bioengenharia. A narrativa tem como foco a estranha sociedade alienígena do planeta Arieka, estabelecida por seres conscientes fascinados por idiomas e figuras de linguagem. Quando um novo Embaixador visita o planeta, sua chegada desencadeia uma série de eventos catastróficos que ameaçam toda a estrutura de Embassytown – e a própria política do universo. Imperdível para quem gostou de A Chegada ou leitores de Orson Scott Card e Ursula Le Guin.
‘The Quantum Thief’ – Hannu Rajaniemi
Com esse excelente romance de estreia (o primeiro de uma trilogia), o finlandês Hannu Rajaniemi comprova ser um espécime raro: um escritor altamente criativo, capaz de manejar o delicado equilíbrio entre entretenimento eletrizante e uma trama inteligente, reflexiva e original. Em The Quantum Thief, Rajaniemi apresenta o memorável protagonista Jean le Flambeur, misterioso e lendário fora-da-lei que revitaliza o arquétipo do ladrão de casaca, perpetuado em Arsène Lupin.
A jornada do anti-herói pelo extenso universo criado de Rajaniemi, povoado de inteligências alienígenas e tecnologias improváveis, não é simplificada para o leitor. Adepto do show, don’t tell, Rajaniemi não abre concessões para leitores desatentos. É necessário um mergulho profundo no mundo de Jean le Flambeur para compreender todas as minúcias da trama. O esforço, contudo, vale a pena. Recomendável para quem gosta de histórias de crimes e golpes elaborados, assim como fãs de narrativas que mesclam clichês de gêneros diversos para criar mundos inteiramente originais.
‘The Windup Girl’ – Paolo Bacigalupi
Paolo Bacigalupi estreou na cena sci-fi com um estrondo incomum: seu primeiro romance, The Windup Girl, foi consagrado com os prêmios Hugo e Nebula, consolidando de imediato o nome do autor como um dos grandes escritores de ficção científica do novo milênio. Enquanto o excelente Faca de Água já está disponível nas prateleiras brasileiras pela Intrínseca, The Windup Girl permanece, infelizmente, sem uma merecida versão em português.
Neste livro, Bacigalupi se inspira em sua extensa experiência profissional no leste asiático para criar uma versão futurística hiper-realista de Bangkok, apresentando uma trama arrebatadora que retrata uma das mais criativas e plausíveis distopias da última década.
No mundo futuro de Bacigalupi, a engenharia genética desenfreada resultou na criação de uma classe subserviente de humanos geneticamente modificados e no monopólio de alimentos por conglomerados multinacionais que detêm as patentes dos espécimes resistentes às pragas que as próprias espalharam pelo planeta – imagens típicas do nascente gênero do biopunk. Ainda, as mudanças climáticas (temática que viria a permear as outras obras do autor) desempenham um papel central na lenta degeneração da sociedade e das relações humanas. Uma leitura recomendada para fãs de Philip K. Dick e da cultura tailandesa em geral.
‘Ancillary Justice’ – Ann Leckie
Ancillary Justice é o que Star Wars poderia ser se fosse, de fato, ficção científica. Grande vencedora dos prêmios Hugo, Nebula, Arthur C. Clarke e Locus, Ann Leckie narra, com habilidade ímpar, a saga de vingança da hiperinteligência Justice of Toren, uma hive mind (consciência coletiva) reduzida a um único corpo humano após a destruição de seus demais organismos em uma tentativa de encobrir uma grande conspiração intergalática.
Uma das melhores e mais inovadoras óperas espaciais dos últimos anos, Ancillary Justice é o início de uma trilogia épica, que une arquétipos do sci-fi a novas concepções de gênero e sexualidade com uma forte ênfase no feminino, personagens tridimensionais memoráveis e inovadores retratos de mentalidades múltiplas.
Um livro ideal para qualquer entusiasta de épicos espaciais ou narrativas com foco em teoria de gênero. Em 2014, a editora Aleph adquiriu os direitos de tradução da obra para o Brasil, mas, três anos depois, Ancillary Justice ainda não foi publicada no país. Uma pena!