A recente “descoberta” da possível identidade da escritora Elena Ferrante levante várias discussões: da privacidade à real necessidade de conhecermos o rosto e nome de quem escreve. A autora de A Amiga Genial seria Anita Raja, tradutora premiada e esposa do escritor Domenico Starnone. Para chegar a essa conclusão, o jornalista Claudio Gatti vasculhou os pagamentos da Anita que, segundo o repórter, seriam incompatíveis com os de um tradutor.
A conexão entre Ferrante e Raja não é nova, e circula nos meios intelectuais italianos há tempos. Nas casas de apostas imaginárias há quem acredite que Elena seja, na verdade, Domenico. No final das contas, não importante quem seja ou quem não: o que vale mesmo, o que realmente importa – ou deveria importar – é aquilo que está na página. “Desmascarar” alguém que não quer aparecer é, para dizer o mínimo, desrespeito. É como aquele repórter que fez campana na casa de Vampiro de Curitiba para conseguir uma imagem de Dalton e, claro, conseguiu. Mas a que preço?
Para Gatti, a maior prova de que Raja é mesmo Ferrante é um apartamento de 7 peças em Roma. Não é uma questão de defender alguém de ser ou não outra pessoa, mas sim da verdadeira face de se buscar com tanto afinco descobrir pseudônimos. Existe somente um motivo por trás de tudo isso: audiência. O jornalismo, ou o que sobrou dele, se tornou um território sem ética, focado nos cliques, nas conversões e nas leituras. O editor abre o Google Analytics e quer ver números. Não interessa se o que está por detrás daquela “notícia” seja uma pessoa – que tem uma vida, contas a pagar e uma família. É, mais ou menos, como Número Zero, de Eco.
A ideia do texto é o que vale. Gatti foi infeliz ao caçar uma pessoa inocente e expô-la em praça pública.
Mecanismos internos
A ideia do texto é o que vale. Gatti foi infeliz ao caçar uma pessoa inocente e expô-la em praça pública. Todo estudante brasileiro de jornalismo conhece a história bizarra da Escola Base. Talvez falte essa mesma lição para o nosso amigo italiano, um amigo não muito genial. Gatti tem uma justificativa, no mínimo, maniqueísta: “É uma figura pública, já vendeu milhões de livros e os leitores têm o direito de saber algo sobre a pessoa que os escreveu”. A pergunta que fica é: e os leitores não sabem? O nome dela é Elena Ferrante.
Existe, claro, a curiosidade voyeurística, a vontade de conhecer um pouco mais sobre os mecanismos internos dos nossos autores preferidos. Descobrir que Ferrante é Raja não é o final do mundo e, ao menos, não deveria abalar sua carreira literária. A grande questão é respeitar os limites impostos por cada um.