A obra do escritor alemão W. G. Sebald (1944 – 2001) pode ser lida como um imenso mosaico composto por relatos de diferentes períodos históricos, narrados em camadas sobrepostas no tempo e no espaço, em que o narrador consegue resgatar, captar e recriar a atmosfera de fatos e acontecimentos do passado. Nesse jogo entre relato e memória, os narradores de Sebald dão voz a personagens esquecidos ou silenciados pela história.
O sentimento de perda e melancolia, desterro e destruição, são acompanhados por uma série de fotografias (paisagens, retratos, documentos, cartões postais, etc.) distribuídas nas páginas dos romances do autor. Em Os Emigrantes (1992), obra composta por quatro contos, o tema do exílio integra o eixo central das narrativas, como atesta o próprio título. Nessa obra, Sebald explora a vida de pessoas comuns, de famílias alemãs tragicamente transformadas pelo exílio forçado durante o III Reich.
O tópico do exílio é retomado por outra perspectiva em Austerlitz (2001), último romance do escritor, morto prematuramente em um acidente de carro aos 57 anos. Nesse livro, que é considerado sua obra-prima, o autor nos apresenta o professor Jacques Austelitz, um pesquisador que investiga a história do desenvolvimento da “arquitetura da era capitalista”. Em suas viagens por diversos lugares da Europa, Austerlitz acaba descobrindo sua verdadeira biografia, até então desconhecida. Constata que seu passado está diretamente ligado à tragédia do Holocausto, que seus verdadeiros pais foram judeus tchecos vítimas do regime nazista – o tema do Holocausto, aliás, é uma questão que atravessa a obra de Sebald. Desde então, Jacques Austerlitz segue as pistas de seu passado para reconstruir sua própria memória, numa prosa labiríntica que intercala diferentes gêneros como os relatos de viagem ou o ensaio historiográfico.
Metalinguagem e autoficção como elementos narrativos
Já em Os anéis de Saturno (1995), romance dividido em dez partes, o fio condutor se apresenta já nas primeiras linhas, quando o protagonista inicia uma viagem a pé pelo condado de Suffolk, leste da Inglaterra. Um ano após o início da viagem, o narrador é acometido de uma “quase total imobilidade”, fruto do “paralisante horror” com o qual se deparou em suas andanças por uma região pouca habitada e marcada por “rastros de destruição”.
As consequências da política imperialista das nações europeias, das guerras travadas e do progresso alcançado com o desenvolvimento do capitalismo (Batalha de Waterloo, Guerra do Ópio, Colonização do Congo, Holocausto, etc.) são alguns dos assuntos abordados com grande riqueza de detalhes pelo olhar perspicaz do autor de Guerra aérea e literatura (2011).
A metalinguagem, a intertextualidade e a autoficção propriamente ditas, surgem quando o autor/narrador insere a si próprio na narrativa e invita outros textos literários para compor o enredo da obra, juntamente com a convocação da memória de escritores ou a citação de seus diários.
É assim que, em Os anéis de Saturno, percebemos citações indiretas ou menções a autores como Borges, Swinburne, Lévi-Strauss, Thomas Browne, Kafka e Conrad.
Outro detalhe curioso desse romance são as três pequenas referências feitas ao Brasil, uma a partir da citação de Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss, outra a partir dos relatos de Roger Casement sobre a eliminação de tribos inteiras nas florestas da América do Sul e uma terceira sobre a descrição do museu Mauritshuis, na Holanda, construído no século XVII por Maurício de Nassau. Durante a inauguração, diz o narrador, “dizem que na praça calçada diante da nova construção dançavam onze índios trazidos do Brasil pelo governador, dando aos cidadãos da cidade uma ideia dos países estranhos em que se expandia o poder daquela comunidade” (p. 93).
O caráter destrutivo do progresso
Contudo, destaca-se ainda a quinta e a sexta partes do romance, que correspondem ao relato do escritor Joseph Conrad sobre a política de colonização belga no Congo africano. Intercalando o relato dos horrores do empreendimento colonial com as descrições feitas por Roger Casement (cônsul britânico lotado em Boma, condenado por alta traição e executado após envolvimento com a luta pela independência da Irlanda), esse capítulo lança luz sobre a rotina de mutilações, trabalhos forçados e assassinatos a que os congoleses estiveram submetidos durante anos sob o governo de Leopoldo II da Bélgica.
Outra passagem marcante é a história da destruição, por tropas anglo-francesas, dos jardins encantados de Yuan Ming Yuan, na China imperial. Soma-se a esse atentado a sucessão de manobras e envenenamentos que a imperatriz chinesa Tz’u-Hsi operou para perpetuar-se no poder. Assim, a leitura desse mosaico de destruições e a reflexão sobre as consequências do progresso, remetem ao comentário de Walter Benjamin sobre o Angelus Novus, de Klee, que observa os acontecimentos do passado como uma grande catástrofe que acumula ruína sob nossos pés. Talvez seja essa a impressão provocada pela obra de Sebald, a de que a História, apesar de todos os esforços, é a reunião e o palco onde se desenrolam terríveis catástrofes.
No Brasil, as obras de W. G. Sebald (Os Emigrantes, Vertigem, Os Anéis de Saturno, Guerra aérea e literatura e Austerlitz) estão, atualmente, no catálogo da Companhia das Letras – anteriormente pertenciam ao Grupo Editorial Record.
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