Minha relação com a poesia sempre foi um tanto conturbada, principalmente pela minha inaptidão com questões intuitivas. Na prosa, na pior das hipóteses, interpretações canônicas aparecem aqui e ali e materializam questões no texto. No entanto, em poesia, a coisa muda de figura: como em explicações sobre teoria musical, as pessoas ouvem sons que me parecem sussurros.
De qualquer forma, essa é uma deficiência a ser compensada e, dessa vez, não será o assunto. Hoje, quero falar de um ponto em destaque: “A Tabacaria”, de Álvaro de Campos (ver aqui), heterônimo de Fernando Pessoa. Organizado como um poema narrativo, elemento que deve ter sido um facilitador para mim, conta a história de um poeta que contempla a vida mundana de uma rua pela sua janela, defronte a uma Tabacaria. A partir da observação, o poeta reflete sobre questões existenciais, fuma um cigarro e escreve.
Álvaro de Campos retrata uma angústia voltada para o tudo e para o nada. Oscilando entre interioridade e cosmos e repleto de paradoxos e exageros, o eu lírico parte em uma busca pela verdade permanente, com V maiúsculo, mas marcado por uma consciência niilista de que é um conceito inalcançável – por esse motivo ele olha “para uma rua inacessível a todos os pensamentos, / Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa”.
Nesse embate entre essência e aparência, tenta alcançar conceitos-chave que guiam a vida – os mistérios, a morte e o destino – por meio de coisas prosaicas. Assim, estabelece um diálogo de antíteses que se complementam: o tudo é nada; a Verdade é inacessível, mas permeia tudo que existe no cotidiano. A consciência desse fato torna o próprio cotidiano pesado.
Permeando essa narrativa surgem diálogos com alguém não identificado, mas sugerido como sua musa da inspiração. Procurando inutilmente inspiração em figuras clássicas – deusas gregas, marquesas do séc. XVIII, trovadoras ou imagens modernas ainda não delineadas -, implora: “Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! ”, mas sua musa se revela como uma pequena suja que, sem indagações existenciais, tem prazer no ato despreocupado de comer chocolates.
O próprio saber, tema recorrente no poema, se torna doloroso para o homem de Álvaro e, também, nos trabalhos de Fernando Pessoa. A consciência da verdade inalcançável é um peso tão desgastante que só aparece próximo da morte: “Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. / Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer”. Como saída para a pressão do cotidiano, o sonho evita sofrimento. Como a Verdade é inalcançável, o que diminuiria minhas imaginações e sensações em frente à realidade? Por isso escreve “Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. / Estou hoje dividido entre a lealdade que devo / À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, / E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro”.
‘Ele morrerá e eu morrerei. / Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. / A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. / Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, / E a língua em que foram escritos os versos. / Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.’
Para a valorização dessa postura, tenta abandonar sua consciência para ir rumo à utopia, mas sua lucidez não permite a inocência. O movimento fracassa, como visto nos versos 27-32: “A aprendizagem que me deram, / Desci dela pela janela das traseiras da casa. / Fui até ao campo com grandes propósitos. / Mas lá encontrei só ervas e árvores, / E quando havia gente era igual à outra. / Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar? ”.
Além disso, o sonhar se torna inútil, pois todas as vidas imaginadas não afetam o cotidiano visto pela janela. Por mais que tenha superado gênios e conquistado o mundo, o fez sem levantar da sua cama – por isso se despreza e sente impotência em frente à materialidade do mundo. Dessa forma, quase como um consolo, o poeta percebe a inexorabilidade da morte em um dos momentos mais bonitos do poema:
“Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. / Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada / E com o desconforto da alma mal-entendendo. / Ele morrerá e eu morrerei. / Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. / A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. / Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, / E a língua em que foram escritos os versos. / Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. / Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente / Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas.
Sempre uma coisa defronte da outra, / Sempre uma coisa tão inútil como a outra, / Sempre o impossível tão estúpido como o real, / Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, / Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra”.
Mas a fumaça de seu cigarro e Esteves, que saía da Tabacaria “metendo o troco na algibeira das calças”, tira o poeta de seu transe e traz “a libertação de todas as especulações / E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto”. O final alegre – “o Dono da Tabacaria sorriu” – com seu início niilista instaura uma pausa na discussão do poeta, que admira o prazer daquele que sorri despreocupado, sem metafísica (como sua pequena musa suja de chocolates), ainda que continue sem esperanças.
N“A Tabacaria”, vidas inteiras são vistas em alguns flashes de observação cotidiana da rua e sua loja. Uma verdadeira contraposição da realidade pessoal e íntima e o peso de uma realidade esmagadora.