Definir a Literatura Fantástica não é tarefa fácil. Duas concepções prévias, e quase opostas, surgem quando o tema é levantado: de um lado, destaca-se os textos ligados à Fantasia e seus dragões; no outro, é lembrada a produção de escritores como Borges, Kafka e Gógol. Tais dúvidas também permearam o campo acadêmico e movem pesquisas até hoje.M
Com o intuito de iluminar uma parte desse caminho, começo uma série de textos que tenta esquematizar a Literatura Fantástica, expor sua perspectiva histórica nacional e estrangeira e resenhar alguns livros-chave para o Fantástico.
O professor Alexander Meireles da Silva, doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com uma tese sobre o nascimento da ficção científica brasileira no começo do século XX, docente de Língua Inglesa e Literaturas na Universidade Federal de Goiás (UFG) e organizador o canal e blog Fantasticursos (veja aqui), que discute Fantasia, Ficção Científica e o Gótico, foi o responsável por esclarecer o emaranhado teórico e nos auxiliará no percurso.
Segundo Alexander, “muitos pensam que a identificação de um texto ligado a Literatura Fantástica se dá pela presença de personagens associados e este universo, como alienígenas ou zumbis, mas na verdade, e aí entra a questão, o Fantástico ocorre pelo manejo de elementos da narrativa que provocam no leitor a percepção de passagem da fronteira entre o chamado ‘real’ e outro mundo, em que questões sociais ou de caráter individual são tratados de forma simbólica”.
Para entender tal afirmação e o contexto da Literatura Fantástica, Todorov aparece como uma das principais referências no cenário. Seu estudo Introdução à literatura fantástica foi inovador para o campo: organizou estudos anteriores e propôs uma classificação do Fantástico enquanto gênero.
De maneira resumida, Todorov restringiu essa produção literária ao século XVIII como uma resposta a racionalização do Século das Luzes e a subsequente busca por um realismo extremo dentro das artes. Para confrontar tal perspectiva, os escritores fantásticos estruturavam as narrativas com um elemento particular: a dúvida.
Essa inquietação surgiria da seguinte maneira: primeiro, o livro nos insere em um mundo real, como o nosso; depois, apresenta um evento insólito – algo sem explicação, estranho, impossível. Para explicar e/ou entender esse evento, a narrativa instaura uma hesitação, e tanto os personagens do livro quanto os leitores não conseguem decidir entre a explicação natural e a sobrenatural para compreender a natureza do evento – ou seja, decidir se a tudo foi uma espécie de alucinação ou se o mundo real tem regras novas não conhecidas, como a possibilidade de voar.
Dessa forma, Todorov afirma que o fantástico “dura o tempo de uma hesitação” e logo se dissolve ou para o maravilhoso, quando o acontecimento estabelece uma nova configuração no mundo real, ou para o estranho, quando se admite que a narrativa era fruto de uma ilusão. Enfim, para tal efeito, o leitor deve descartar as interpretações alegóricas e poéticas: enquanto esta se afastaria do acontecimento insólito do texto, aquela ressaltaria acontecimentos fora do livro, dissipando a hesitação.
Diversas críticas sobre o estudo de Todorov surgiram na perspectiva de que a classificação engessou o gênero e excluiu do Fantástico uma série de textos. A primeira insatisfação pode ser relacionada ao estreito recorte temporal. Segundo o prof. Alexander Meireles da Silva, “a existência do Fantástico está presente por toda a tradição da literatura ocidental e oriental, como afirma Jorge Luís Borges”.
Além disso, a dissolubilidade do Fantástico, que empurra seus textos para o terreno do maravilhoso ou do estranho, e a impossibilidade de uma interpretação poética e alegórica também foram repensados ao longo do tempo por estudiosos como David Roas e José Paulo Paes.
O Fantástico se aproximou da fantasia e a sua concepção ficou ligada a representações de fatos sobrenaturais e, principalmente, dos acontecimentos insólitos.
Dessas releituras e críticas, algumas linhas de pesquisa deixaram de ver o Fantástico enquanto gênero e passaram a vê-lo como modo discursivo. (Vídeo do Fantasticursos sobre a diferença, veja aqui). Por esse caminho, como no estudo de Rosemary Jackson, o fantástico se aproximou da fantasia e a sua concepção ficou ligada a representações de fatos sobrenaturais e, principalmente, dos acontecimentos insólitos. Como afirma Filipe Furtado, no dicionário de termos literários (veja aqui), tal texto “recobre não só as manifestações de há muito denominadas sobrenaturais, mas, ainda, outras que, não o sendo, também podem parecer insólitas e, eventualmente, assustadoras. Todas elas, com efeito, partilham um traço comum: o de se manterem inexplicáveis na época de produção do texto devido a insuficiência de meios de percepção, a desconhecimento dos seus princípios ordenadores ou a não terem, afinal, existência objectiva”.
Dessa forma, o Fantástico se ramificaria em outras vertentes, como o Gótico, a Fantasia e a Ficção Científica. O trabalho de escritores como Borges, Kafka, Bioy Casares, Gógol e Cortázar seria entendido como a Literatura Fantástica, dentro desse modo discursivo, que trabalha com variadas e multifacetadas formas de trabalho com o insólito, perspectiva a ser aprofundada ao longo da série.
Por onde começar?
- Na Fantasia: Contos de fadas dos irmãos Grimm; O Hobbit (1937), de J. R. R. Tolkien.
- No Gótico: Frankenstein (1818), de Mary Shelley (ver resenha aqui); Drácula (1897), de Bram Stoker.
- Na Ficção Científica: contos de Philip K. Dick.
- Na tradição brasileira: contos e crônicas de João do Rio; contos de Murilo Rubião.
- Na Literatura Fantástica: A Metamorfose (1915), de Franz Kafka; o conto “A Pata do Macaco”, de W. W. Jacobs; Antologia da Literatura Fantástica, organizada por Jorge Luís Borges, Silvina Ocampo e Adolfo Bioy Casares; Contos Fantásticos do Século XIX, organizado por Ítalo Calvino.