Ao longo do último mês, discutimos diferentes concepções acerca da Literatura Fantástica (clique aqui), exploramos a história da Literatura Fantástica e suas vertentes, tanto em solo estrangeiro como nacional, disponível aqui, e vimos boas antologias para começar a conhecer esse universo (clique aqui). Enfim, para concluir a série, vamos conversar sobre o escritor argentino Jorge Luis Borges e um de seus contos, “O Jardim das Veredas que se Bifurcam”.
Jorge Luis Borges tem um extenso repertório. Conhecido por suas narrativas curtas, sua atuação também abrange a poesia, o ensaio, os estudos literários e as resenhas de livros – inclusive daqueles que nunca existiram. No podcast In Our Time: Culture, da BBC (disponível aqui), Melvyn Bragg apresenta Borges como um dos maiores escritores do século XX, que escreveu contos que “brincavam com ideias filosóficas, como identidade, realidade e linguagem”. Apesar do seu trabalho ter influenciado escritores como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, viveu a maior parte da vida no anonimato e só foi reconhecido internacionalmente na casa dos 60 anos, já cego e ditando seu trabalho.
Nesse vasto acervo de trabalho, Borges contribuiu muito com a Literatura Fantástica, principalmente por acreditar que o realismo era supervalorizado. Dessa forma, organizou antologias, empreendeu estudos, como um manual de zoologia fantástica, e se dedicou a estruturação de um universo imaginário a partir de seus contos.
Italo Calvino, em Por que ler os clássicos, explica como Borges estruturou a ideia de literatura como um mundo construído e gerenciado pelo intelecto. Para o escritor, a realidade só existe se estiver registrada pela palavra escrita; a palavra se torna a origem e o fim da realidade: “origem, porque se torna o equivalente de um acontecimento que de outra maneira ficaria como não tendo ocorrido; como fim, porque para Borges a palavra escrita que conta é aquela que tem um forte impacto sobre a imaginação, enquanto figura emblemática ou conceitual, feita para ser lembrada e reconhecida em qualquer aparição passada ou futura”.
Dessa forma, Borges passa a estruturar o que George Steiner chamou de “antimundo”, um local onde a realidade é moldada à sua maneira, de acordo com sua percepção e vivência. Assim ele cria uma metáfora para a existência que reagrupa elementos da realidade e forma outros mundos possíveis, e é nisso que pensa quando cita nomes que não existiram, resenha livros que não foram escritos.
De acordo com George Steiner, tal Universo/Biblioteca borgeano “abrange todos os livros, não só os que já foram escritos, mas cada página de cada tomo que virá a ser escrito e, o que importa ainda mais, que poderia vir a ser escrito”, da mesma forma que comporta “não só todas as línguas, mas também as línguas que desapareceram ou ainda estão por surgir”.
De pouco em pouco, seus textos multiplicam o próprio espaço por meio ‘de outros livros de uma biblioteca imaginária ou real, leituras clássicas, eruditas ou simplesmente inventadas’.
Segundo Calvino, uma invenção fundamental de Borges foi a criação de si mesmo como um narrador – técnica que o permitiu sair da prosa ensaística para a fictícia. Dessa forma, fingia que o livro que gostaria de escrever já estava escrito por outro autor, desconhecido, e o resenhava. Conforme Italo Calvino descreve, “faz parte da lenda de Borges a anedota de que o primeiro extraordinário conto escrito com essa fórmula, ‘El acercamiento a Almotásim’, quando apareceu na revista Sur, foi encarado de fato como uma recensão de um livro de autor indiano”.
De pouco em pouco, seus textos multiplicam o próprio espaço por meio “de outros livros de uma biblioteca imaginária ou real, leituras clássicas, eruditas ou simplesmente inventadas”. Somos introduzidos à sua recorrente ideia dos labirintos, do infinito e das diferentes temporalidades e que poderemos entender melhor pelo conto “Jardim das veredas que se bifurcam”. (O conto foi analisado em uma aula pelo crítico Davi Arrigucci Jr., disponível aqui).
Jardim das veredas que se bifurcam
Borges abre o conto com a transcrição de um parágrafo do livro História da Guerra Européia, onde alguns elementos históricos já são subvertidos e acontece a primeira duplicação da realidade. No parágrafo seguinte, o estilo do texto muda e somos apresentados a um conto de espionagem: um chinês, a serviço da Alemanha, é perseguindo por um irlandês, a serviço da Inglaterra. O alvo é o protagonista da história e ele está incumbido de avisar seu chefe, que está lendo os jornais cotidianamente, qual a cidade deve bombardear. O plano que elabora é assassinar um inocente cujo nome é o mesmo da cidade que deve ser atacada.
Para completar a missão, o narrador vai até a casa de seu alvo e descobre nele, Stephen Albert, um pesquisador de seu antepassado, o sábio Ts’ui Pein. A história contada é que esse antigo mestre chinês se isolou por 13 anos com a intenção de criar um labirinto e um romance, mas, só depois de anos passada sua morte, descobriu-se que o labirinto e o romance eram a mesma coisa.
Esses elementos compõem diversos questionamentos da obra borgeana, dos quais destacaremos os limites da narrativa. Em primeiro lugar, a figura do labirinto sugere uma trama de caminhos e escolhas infinitas que te impedem de chegar até o centro. O romance está no outro extremo em relação às possibilidades. Se um personagem pega a primeira entrada à direita está fadado a percorrer sempre o mesmo caminho.
O que Ts’ui Pein tenta fazer é potencializar a escrita e desenvolver uma poética capaz de retratar todos os caminhos percorridos e contá-los no mesmo romance. O resultado é, obviamente, caótico: todos os caminhos são realizados e, portanto, nenhum aparece de maneira clara. É o que leva o protagonista a dizer: “Essa publicação foi insensata. O livro é um acervo indeciso de rascunhos contraditórios. Examinei-o certa vez: no terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo”.
A análise dessa pequena faceta do conto “Jardim de veredas que se bifurcam” deixa entrever a ideia de infinito para Borges. O infinito do escritor não é temporal, uma duração plena e indefinida, mas uma série de possibilidades em aberto que gera multiplicações e a percepção de múltiplas temporalidades.