Elena Ferrante – assim como Salinger, Pynchon e Dalton – constrói a sua literatura por meio da ausência, seja a falta da sua própria figura física ou a abstração camusiana em relação ao outro. Em A Vida Mentirosa dos Adultos, a escritora napolitana propõe um mergulho nas relações familiares e no limite entre realidade e memória.
A investigação – que, em alguma medida, revisita Pelos olhos de Maisie, de Henry James (1843 – 1916) – parte da percepção de Giovanna, uma adolescente que testemunha a sua vida desmoronar após descobrir os enlaces escondidos em uma vida, aparentemente, perfeita. São pequenos erosões cotidianas que rompem a quietude familiar: casos extraconjugais, intrigas que se desenrolam há décadas e desvios de rotas que levam todos ao mesmo abismo.
Como é típico na sua literatura, Ferrante cria um mosaico psicológico para formar seus personagens em ações banais, quase invisíveis, mas que, no andar do tempo, se tornam elementos fundamentais para estabelecer linhas de complexidade e nuances. A Vida Mentirosa dos Adultos explora as brechas de uma classe média educada e instruída cujo verniz rompe à mínima tensão. É mesma classe média que, cega pelas vaidades, permite o absurdismo e a violência como status quo.
A Vida Mentirosa dos Adultos traz à tona os temas que são de praxe na obra de Elena Ferrante, entretanto, nenhuma outra questão ascende tanto quanto a identidade.
Ferrante coloca sobre Giovanna o peso de amadurecer a fórceps e deixar escorrer entre os dedos, e antes do tempo, o idealismo juvenil. Nessa cadeia de acontecimentos, a protagonista se depara ora com a ilusão de que tudo voltará a ser como antes, ora com a certeza de que existe uma inflexão irrevogável. Giovanna é a filha que se perde por pura vontade, que entra no labirinto sabendo que será impossível sair. Encurralada, não resta outra solução senão aprender a viver nos caminhos desta ciranda de pedra.
Identidade à prova
A Vida Mentirosa dos Adultos traz à tona os temas que são de praxe na obra de Elena Ferrante, entretanto, nenhuma outra questão ascende tanto quanto a identidade. Se Giovanna é a metáfora mais clara sobre essa busca, seus pais, suas amigas, seus interessantes românticos e sexuais são também gentes à procura de si mesmas.
Existe, nesse sentido, um grande caleidoscópio de possibilidade e infortúnios – o tal mosaico mencionado anteriormente – que gera uma espécie de desconforto e identificação – ambos elementos que integram o fazer literário de Ferrante. Basta lembrar da reação de Delia no funeral da mãe em Um Amor incômodo, por exemplo. São verdades inconvenientes que dão corpo à vida mentirosa de que fala o título, mas que também são capazes de consolar.
Como no romance de James, o livro de Ferrante se vale da inocência de sua narradora para criar um relato vigoroso e pontual sobre a queda dos homens – um itinerário triste e inevitável – como se, à guisa de Clarice, a felicidade fosse sempre clandestina.
A VIDA MENTIROSA DOS ADULTOS | Elena Ferrante
Editora: Intrínseca;
Tradução: Marcello Lino;
Tamanho: 432 págs.;
Lançamento: Setembro, 2020.