Por dois anos, durante a faculdade de Jornalismo, trabalhei em uma livraria. Isso, há uma década, talvez, um pouco mais. Naquela época, não havia Amazon. Já havia passado a febre do Saramago e do Paulo Coelho. A moda era os vampiros gente boa, depois viria a literatura erótica easy. Era um tempo em que o trânsito de um livro dentro da própria cadeia de lojas levava de três a sete dias e não havia algoritmo que escolhesse a próxima leitura. Era papel do livreiro fazer a curadoria do que serviria para cada cliente. Era uma época em que se conversava, sem medo do vírus e de descobrir que aquela pessoa – que tinha um papo bacana e lia bons livros – havia gritado “mito” no meio da rua ou defendido o AI-5 nas redes sociais. Esse tempo, na verdade, não morreu de todo: ainda é uma realidade nas livrarias de rua e independentes.
Já experimentamos a extinção de muitos jornais que, para além de uma miríade de jornalistas sem trabalho, deixaram um espaço aberto para as fake news tomassem campo e elegessem presidentes ao redor do globo. Toda uma geração trocou os veículos de notícias por redes sociais e esse caminho levou à inundação de informação descabida e à criação de grupos negacionistas e revisionistas. Ao que dá para entender, ainda não aprendemos a lição.
Quando procuramos um livro na Amazon, e faço uma mea culpa quanto a isso, fornecemos dados para que sejamos rastreados e vendidos como a mercadoria que compramos na loja do Jeff Bezos. Um livro com preço de capa de R$ 59 está disponível na Amazon por menos da metade. Nessa lógica pragmática, o leitor acha que está pagando menos – e está, em um primeiro plano –, porém, a longo prazo está contribuindo para que o pequeno comerciante, aquele que você pode encontrar no cafezinho, seja eliminado. A competição morre e os preços são reajustados ao bel prazer de quem manda no mercado.
A pandemia dilatou ainda mais esse abismo entre os grandes varejistas e os pequenos. Se antes ir à livraria do bairro ou do shopping era uma espécie de lazer, de se deixar levar, o coronavírus transformou, como diria Cazuza, o prazer em risco de vida. Cada vez que saímos de nossas casas – com as nossas máscaras, obviamente, – para ir à livraria estamos explorando a cidade. Somos os flâneurs do João do Rio. A ideia da velocidade e do imediatismo está aniquilando o devagar e o divagar. Caminhar é desenhar, disse uma vez Vila-Matas sobre Paul Auster. Gosto de repetir essa frase à exaustão – e não é a primeira vez que a cito por aqui –, justamente, porque parece ser a síntese da minha relação pessoal com o espaço urbano e os livros.
Num país em que o índice de leitura é baixo – e que perdeu quase 5 milhões de leitores nos últimos anos –, advogar em favor da taxação de livros é reduzir o direito de ir e vir de qualquer cidadão médio ao tráfego por cruzamentos de links e ruelas digitais que, não raras vezes, levam a um beco sem saída. Dessa experiência corpórea de leitura restam apenas as migalhas. Por trás de todo desejo de inacessibilidade, existe um egoísmo elitista, um desejo de concentração de renda e poder, de alienação e corrupção.
Se as quase meio milhão de mortes por COVID-19 estão naturalizadas e se quem busca o isolamento é idiota, não é de admirar que a cultura do livro esteja em derrocada. Para quem precisa sobreviver nesse turbilhão de doença, fome e desamparo, é difícil imaginar que a leitura esteja em primeiro lugar. Por isso, a despeito de todos os poréns, é de se comemorar um fenômeno como Torto Arado, livro que já chegou perto das 150 mil cópias vendidas. Itamar Vieira Júnior vende livros como os padres escritores vendiam há dez anos.
Quando as livrarias independentes fecham são novos leitores que morrem. São pessoas como eu e você que desaparecerão.
Quando passar a necessidade de isolamento, afirmam alguns especialistas, pode-se desencadear uma onda de hedonista. Os anos loucos que nos aguardam podem ser anos sem livros. Um tempo em que a viagem física – que também faz muita falta, diga-se de passagem – anule o passeio invisível, que só cabe nas páginas de um livro. É um descarte da imaginação e da fantasia. É uma ode à ignorância e à petulância.
A dominação da Amazon não se dá apenas no monopólio do comércio, mas também perspectiva da dominação cultural. Essa falsa liberdade é uma estratégia poderosa de contingenciamento da produção dos artistas locais. A seleção do que pode ou não ser vendido, do que deve ou não ser lido acontece em um sistema apático e desumanizado. Na história da literatura não foram poucas as livrarias foram QG de escritores, que foram ponto de encontro e discussão. Defender a livraria de rua e a livraria independente não é querer a volta da máquina de escrever, ao contrário, é não permitir caiamos na irracionalidade mecanicista.
Aqueles anos de livraria me formaram como leitor e como escritor. Ajudaram a despertar em mim a certeza de que era possível perpetrar pequenas revoluções individuais através da leitura. Era uma época de rebeldia e idealismo, de vontade de mudar o mundo. E quem roubou nossa coragem? Quando as livrarias independentes fecham, são novos leitores que morrem. São pessoas como eu e você que desaparecerão.