“Dizer ‘realidade’ é já dizer uma metáfora”. O real para poeta e dramaturgo curitibano Luiz Felipe Leprevost é relativa, assim como as memórias eletivas e sentimentais que carregamos da infância, da juventude e, claro, da cidade. Tudo urge no meu estar tranquilo, seu mais recente livro de poemas, é uma reflexão sobre a maturidade e a noção do espaço público.
Avesso ao rótulo de “poeta pop de Curitiba”, atribuído em 2012 após o show da Virada Cultural, Leprevost vê a capital paranaense como um lugar de comunhão e desejo coletivo de que os artistas locais – rótulo que também rejeita – “tomem espessura e vulto maiores em relação ao Brasil, espalhando-se por ele afora”. E parece que deu certo: Karol Conka, A Banda Mais Bonita da Cidade, Alexandre Nero, Caetano Galindo, entre outros, tomaram o país de assalto. Isso antes de Curitiba ser promovida a “república”.
A poesia de Leprevost coloca em xeque, justamente, o status quo curitibano. A neve de 1975, há anos um retrato da europeização da cidade, já não tem mais o mesmo charme. É preciso renovar e ressignificar a “Curitiba para inglês ver”, mas que é ainda a mesma cidade que se gaba de ser a “mais reacionária do país”.
Com urgência e calma, a poesia de Luiz Felipe Leprevost se desdobra em uma análise sincera e, por vezes, cruel. Ao brincar com a cor local, o poeta repensa a sua própria representatividade, um ato de coragem e autocrítica. Algo para poucos. O resultado, ao final, é positivo. Tudo urge no meu estar tranquilo é a obra mais completa de Leprevost, unindo forma e conteúdo de modo único.
Lançamento
Tudo urge no meu estar tranquilo será lançado no Rio de Janeiro no dia 21 de fevereiro, na Livraria da Travessa (Botafogo), às 19h. Para saber mais, clique aqui.
Entrevista
Em uma conversa franca com a Escotilha, o escritor fala sobre o atual papel curitibano na política brasileira, a representatividade da arte produzida por aqui e o que ainda está por vir na sua Trilogia da geada.
Escotilha » Podemos dizer que Tudo urge no meu estar tranquilo é formado por três livros ou partes. O primeiro trata do eu; o segundo é sobre o outro; e o último fala da cidade, fechando um equação do “eu + o outro”. Como a poesia pode amansar a urbe cada vez mais inflamada – e inflada – pelo discurso político polarizado?
Luiz Felipe Leprevost » Apontou Drummond num poema: “As atitudes inefáveis / os inexprimíveis delíquios / êxtases espasmos beatitudes / não são possíveis no Brasil.” Outra maneira de dizer isto talvez fosse: “não pense em crise, trabalhe.” Que frase mais canalha e cínica, não é? A linguagem poética não é servil, não é escrava, é dançante. A poesia exige de nós coragem. Portanto, amansar, não, jamais. Poemas em chamas, explosivos, os que afetam e movem. O eu, o outro, a equação eu + o outro. Agrada-me a sua percepção e a síntese que alcança sobre o livro. Não creio caber necessariamente à poesia qualquer papel, mesmo papéis que a aproximem da política, quanto mais desse tipo de política que é praticada no país.
Escrever poesia, por outra lado, é já ato político o bastante (mesmo que não o suficiente). Poesia é parte da vida, é constituidora da nossa noção de humanidade, está na história das sociedades, na cultura, nas culturas. Entre nós os seres humanos, na vida em sociedade, a relação é algo determinante. Por esse viés, chegamos ao âmago da questão por você proposta e a poesia a atravessa como uma luz. A polarização que aí está é estúpida. Foi manipulada desde sempre até vir dar aqui. A quem interessa? A canalhice e os canalhas estão expostos, não é? O pensamento binário tem regido a pauta das discussões públicas mais urgentes.
Agora mesmo, nem duas semanas atrás, um deputado federal oportunista queria aprovar alteração da lei com o intuito de criminalizar obras de arte de qualquer área que expusessem órgãos genitais. No ano passado foi preciso que brigássemos com essa pandilha de hipócritas disfarçados de paladinos da moralidade, desde o episódio do Queermuseu. O pensamento binário é de uma derrota tremenda, dá espaço para esse tipo de visão redutora e manipuladora. E, principalmente, o binarismo e a polarização são contra a poesia. Porque a poesia é contra o reducionismo, o achatamento, a burrice que isso aí representa.
Sua pergunta vai ao ponto justamente porque em épocas sombrias como a que vivemos muitos dizem não haver tempo a perder com arte, dinheiro para investir em arte, necessidade de que haja arte. Tentam criminalizar os artistas. E são justamente bandidos notórios, sabemos, os que atuam nesta direção. Minar o sensível, o afeto, minar o senso crítico, o conhecimento, minar o lúdico, o pensamento, minar o desejo, solapar, sufocar, soterrar memórias, promover a ignorância, são estratégias de poder. Fica claro, portanto, que nunca precisamos de poesia tanto quanto precisamos agora. Quero dizer, agora quando vivemos uma crise da palavra, agora que há abundância de palavra vazia nas redes, de promessas e balanços falaciosos na boca das imprensas e dos governos, etc. Não é sem razão que escutamos dizer por aí que não há mais “pessoas de palavra”, ninguém honra aquilo com que se compromete, ninguém cumpre o que fala. Os contratos parece já não darem conta de estabelecer os limites dos nossos direitos e deveres, para ficar no nível do fundamento.
A democracia tem em seu princípio a palavra como instrumento de mediação das relações, dos conflitos, dos acordos, dos entendimentos necessários para que a ideia e os ideais de civilização possam se sustentar. Fomos levados de modo gradual, quase sem que percebêssemos, a uma incapacidade de simbolização. Como isso é feito? Atacando valores inscritos nas artes e ao redor delas, do sensível, do interpretativo, das exigências do sentir e do pensar por si só, de modo amplo e não escravo. Vemos tudo sendo lido na literalidade, o binarismo imperando, então a poesia entra. Insubordinada, a poesia entra. Nunca amansando. Ao contrário, chacoalhando. Não admitindo a normose. Inflamando mais, explodindo a mediocridade das coisas dadas de modo óbvio e confortável. Exigindo outra posição do corpo no mundo, porque exigindo outro modo de uso da linguagem.
Lembra do poema do Paul Auster? “O mundo está em minha cabeça. Meu corpo está no mundo.” A poesia entra selvagem. A poesia não se deixa capturar pela moral eleitoreira dos hipócritas, pelas verdades únicas, pelo pensamento unívoco. Isto é poesia e isto também é política. Há a manutenção de certa prática civilizatória, de combate a barbárie. “Onde não há civilização, graça a barbárie”, disse o Freud. É a luta constante para se manter o espírito livre, porém dentro de uma noção de estado democrático de direito, com limites, com códigos, com a construção simbólica de uma série de acordos que dão sustentação para a vida em sociedade. A poesia é força libertadora, é um superpoder capaz de confrontar monstruosidades e ajudar com que encaremos de frente a crise cultural, moral, espiritual e, especialmente, ética que se apresenta.
Em um dos seus poemas, você brinca com o orgulho curitibano da neve de 1975, um forte elemento de cor local. É preciso se desfazer da nostalgia que (des)constrói a cidade para erguer uma nova percepção sobre o espaço e o cidadão?
Essa coisa toda da “neve de 1975” me remete a uma insistência sobre determinada visão (quem sabe ultrapassada, ou então demasiado nostálgica) que se tem de Curitiba. Há aquela frase de um dos textos do Dalton Trevisan (cito de cabeça): “a Curitiba para inglês ver.” A “neve de 75” para mim ficou nessa dimensão, a da baboseira da “cidade mais europeia” do Brasil, onde então nevaria charme e modernidade. É uma luta, porque, repara, a tal República de Curitiba se gaba de se ter transformado na cidade mais reacionária do país, com um pensamento político autoritário e elitista, com a manutenção de máfias intercomunicantes em todas as esferas públicas, nos três poderes. E há a apropriação de um mito urbanístico que se quer revolucionário (e acredito, para ser justo, que de certo modo foi).
Concretamente, mexeu-se na cidade, executou-se uma grande transformação, para o bem ou para o mal. Houve, como o próprio Lerner chamou, uma “acupuntura urbana”. Neste sentido, usando a metáfora em questão, nevou na cidade. Porém, aquilo não mais se sustenta, porque os que surfaram e surfam em sua herança, são o contrário radical de qualquer possibilidade de mudança, são ultraconservadores, mantêm as coisas cristalizadas (sempre com um discurso falacioso de transformação). E o espaço urbano, o viver a cidade por parte dos cidadãos, precisa de soluções, precisa ter apoio, porque há um desejo sem volta, uma necessidade de ocupação da rua.
Mas ao mesmo tempo Curitiba elegeu uma alma sem luz ressurgida do pior do passado, embarcando num slogan que dizia “volta Curitiba”. Quer dizer, Curitiba parece não só não querer avançar, como também preferiu retornar ao passado. Não basta estar parada, ainda tem andar para trás? Só que o passado não volta, sabemos. E que fique claro, com isso não estou defendendo qualquer outro político, todos terão que rebolar o bom rebolado progressista (para dizer o mínimo), humano, franco, não-corrupto. Todos terão que trabalhar para as pessoas de fato e verdadeiramente, ou continuarão não merecendo estar em seus cargos, por mais que sejam eleitos democraticamente, porque sabemos que a nossa democracia é bastante frágil e imperfeita e está estruturada e submetida ao poderio do dinheiro (e o quanto dele pode ser sujo, não é?). A mentalidade e as atitudes dos políticos brasileiros têm que mudar. Mas é claro que Curitiba anda e andará para frente, porque há uma resistência que bate e continuará batendo de frente com o pensamento retrógrado. É com esta resistência que eu me afino, eles são a Curitiba que inspira, que move. Que fiquem esperando a neve do passado cair, eu quero valorizar os ciclos das estações, o movimento, a dança da vida.
Você afirma que “não há antídoto capaz de neutralizar uma metáfora”. O verso reflete bastante o seu fazer poético. Para você, a metáfora é a melhor maneira de retratar a realidade?
De certo modo, dizer “realidade” é já dizer uma metáfora, porque chamar isso que nós não sabemos exatamente o que é de “realidade” não dá conta dela, seja lá o que ela for. Neste sentido, o uso da linguagem, o uso da língua corrente, o uso da língua para comunicação em nosso cotidiano tem uma condição, em alguma medida, metafórica e até mesmo poética, porque ela advém de construções como a cultural, por exemplo, de meios que foram se formatando, se desenvolvendo.
Por outro lado, a poesia em seu estado mais potente e menos lugar-comum está aí, se permite que me apropriei de Rimbaud, para “desregrar” a coisa toda. Não estou interessado exatamente em “retratar” a “realidade”. O que isso significa? O que é mais fiel à realidade, um romance do Marçal Aquino, o seu Cabeça a prêmio, ou o Encrenca do Manoel Carlos Karam? São realidades distintas e ao mesmo tempo inscritas na nossa realidade. Como se lê? O que se lê do que se lê? Qual narrativa nos dá a dimensão mais aproximada da vida, da nossa vida, da vida dos outros, aquela que espelha realisticamente (e não que esta escolha não possa ter uma potência poética incrível) ou aquela que é capaz de traduzir os sentimentos em palavras de um modo tão inventivo que estranha e transforma aquilo que reconheceríamos mais imediatamente como “realidade”? Qual nos afasta para uma melhor percepção crítica do mundo e de nós no mundo? Isso tudo é sem solução, mas se nos dá a um manuseio sem fim. Que lindo.
Tudo urge no meu estar tranquilo é também uma reflexão afiada sobre o amadurecimento e sobre o “sair de casa”. Como a mudança para o Rio de Janeiro aflora na sua produção literária?
Voltei a morar no Rio no começo de 2016. Vim para a faculdade de teatro, vim estudar novamente na CAL (Casa de Artes de Laranjeiras), onde eu havia me formado no curso profissionalizante em 2008. Era o meu foco, o meu primeiro objetivo, me reciclar, proporcionar a mim um recomeço. E foi realmente maravilhoso. Estar em sala de aula com artistas estudantes, com mestres se doando ao ensino de algo que tem sido tão desrespeitado no Brasil, que é o trabalho de ator, que são as pessoas de teatro. No começo de 2017 tive a alegria de ser convidado para estar no elenco de Hamlet, na montagem da Armazém Cia. de Teatro, sob a direção de Paulo de Moraes. Continuo trabalhando com eles, fazendo a peça pelo Brasil todo e também no dia a dia da sala de ensaio. Quero dizer, é uma vida de ator que eu levo aqui. Isto não impediu que eu escrevesse, ao longo dos dois últimos anos, os poemas de Tudo urge no meu estar tranquilo.
Quando cheguei no Rio voltei a ser a arrebatado pela beleza natural da cidade, vivi um novo deslumbramento com a luz da cidade e a atmosfera da cidade. É claro que havia (como ainda há) todo esse mal-estar sócio-política sufocando os brasileiros. E se o Rio já ia mal, o tal Crivella, que é alguém que (como diz um pastor – veja você – num vídeo que acabei de assistir no Facebook – e eu concordei completamente com ele): “não respeita o Estado laico, não tem espírito democrático, faz do projeto da sua igreja um projeto de poder, é um péssimo gestor, está sucateando a saúde e a educação do Rio, desrespeita as manifestações culturais (especialmente as africanas), não compreende (não quer compreender) o enraizamento da cultura popular brasileira na cidade, é um coronel da fé que utiliza do Estado para promover interesses do seu grupo, não tem espírito republicano, não demostra sensibilidade alguma junto aos pobres, tem uma prática política nefasta” (tentei mais ou menos reproduzir a fala do vídeo). Enfim, este prefeito está não só deixando, mas também contribuindo, para que o caos completo se instaure na cidade. De todo modo, quando aqui cheguei, estava focado nos estudos e no trabalho, sem me deixar dispersar, sem embarcar em seduções arriscadas. O Rio é muito festivo, se você não fica atento está numa festinha com pessoas legais todos as noites da semana. Da outra vez, há doze anos, eu vivi certas intensidades que em geral não me tem interessado mais. Foi a época em que escrevi um livro chamado Ode Mundana.
Naquele período eu era bastante jovem e me joguei completamente (como um jovem em geral faz, não é?). Havia uns versos do Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) a ecoar na minha mente: “Sentir tudo de todas as maneiras / Viver tudo de todos os lados / Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos / Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.” Eu ia em shows de famosos e desconhecidos, não importando a região da cidade e o lugar do show, não importando se eu tinha companhia ou não, eu ia ver peças, performances, eventos de poesia falada, conferencias de intelectuais, reuniões políticas. E subia morro para um evento cultural, subia o alto da Gávea para tentar entrar de penetra na festa de aniversário do Selton Mello. E corria de metrô ao Mosteiro de São Bento assistir a missa com canto gregoriano. E ia para Niterói fazer aulas de canto. E tantas outras aventuras inesquecíveis, tantas amizades que duram até hoje. E eu estava jogado na boemia. E também estudava a tarde inteira. O retorno em 2016 ao Rio foi de certo modo voltar para tudo isso, mas com um grande distanciamento (até crítico). Digamos que eu já conhecia a área bem, pelo menos a Zona Sul. Então era voltar ao desejo de viver tudo, mas mais que isso, de voltar a mim mesmo, a uma potência inicial da qual talvez eu tivesse me perdido. Voltar ao Rio era voltar para o ator que havia em mim, voltar para o poeta essencial, um poeta mais ingênuo e aberto, sempre buscando se conhecer mais, melhorar sua humanidade. Não sei se isso significa um amadurecimento, acho que sim. Não sei se significa um amadurecimento eu, para escrever o Tudo urge no meu estar tranquilo, ter me despido de qualquer competitividade. Porque foi assim, não pensei em ser contemporâneo (se isso acontecer poderá até ser bom) e nem em quaisquer modismos. Não pensei em ser aceito pelos círculos intelectuais (se isso acontecer também poderá talvez ser bom), não pensei em ranços nem em encantos (porque há) acadêmicos. Não medi as coisas, não escolhi demais. Escrevi com o coração todo para frente, como o búfalo do poema do Federico Garcia Lorca. Os poemas foram aparecendo, de impulsos, virando pulsações, respiração de animal. É claro que já exercitei bastante a escrita poética ao longo da vida, então o livro acabou por ter um tratamento estético, que veio depois, numa etapa posterior. Acabou que tentei não deixar nada solto ali. E também houve e há o meu desejo de que seja um livro bonito e bom, bom de ler, bom de sentir (que chegue aos corações), bom de pensar, bom de habitar ao longo da vida, como são, aliás, os livros de poesia que eu amo.
Um dos poemas cita os capítulos 7 e 93 d’O Jogo da amarelinha, de Cortázar. Como é a sua relação com a literatura latino-americana?
De várias formas poderia responder a esta pergunta. Depois de meditar um pouco, fiquei pensando que a melhor delas seria narrar a experiência que vivi em Montevidéu no ano passado acompanhado de amigos poetas do Brasil, no Mundial de Poético. Porém, não consegui fazer uma narração a contento. Por isso, tendo pedido autorização do autor, reproduzo aqui texto que o poeta Vitor Paiva escreveu sobre a nossa experiência por lá. Independente das leituras que eu já tenha feito de autores da América Latina, isto que o texto do Vitor apresenta dá conta de mostrar, além de quadro bastante amplo de relações, também a relação que hoje, graças a esta experiência, tenho com a literatura viva e atuante do nossos irmãos. Clique aqui para ler.
“Para o segundo menor país da América do Sul, maior somente que o Suriname, tendo a terceira menor população do continente com cerca de 3,4 milhões de habitantes, nos últimos anos o Uruguai vem fazendo um saudável e importante barulho ao sul do continente.
Em um momento de largos passos sociais, políticos, culturais e humanos dados para trás, em especial pelo Brasil, esse pequeno país à beira do Rio da Prata segue como um gigante empurrando pautas tão fundamentais quanto atrasadas, como a legalização da maconha e do aborto, o casamento gay e a energia limpa.
O que poucos sabem, porém, é que o Uruguai também pode ser visto como uma referência em um assunto talvez surpreendente: a poesia. A terra de Eduardo Galeano e Lautreamont foi pela terceira vez cenário do Mundial Poético de Montevidéu, um festival internacional reunindo poetas de todo o mundo por uma semana na capital do país.
Em 2017, finalmente pude aceitar ao convite que o querido amigo e poeta uruguaio Martín Barea Mattos já havia me feito na edição anterior do Mundial, e fui a Montevideo para passar a última semana do mês de outubro entre poetas, apresentando-se e falando poemas todos os dias nos mais diversos palcos, teatros, bares e locais da capital do Uruguai.
Formava comigo a comitiva brasileira do Mundial os poetas Pedro Lago, Pedro Rocha, Luiz Felipe Leprevost e a poeta Amora Pêra. Toda a felicidade de viajar como escritor, em especial como poeta, a outro país teria como contraste, no entanto, dois pequenos poréns, que fariam pessoalmente da minha estadia uma pequena cruzada pessoal.
Essa cruzada começou antes mesmo de pousarmos em Montevidéu. A viagem ao Uruguai, que deveria durar poucas horas, acabou levando quase um dia inteiro, pois o avião não pôde decolar da conexão em São Paulo, por conta de uma pane no sistema de ar da aeronave.
Tivemos de dormir em um hotel de poucas estrelas em Guarulhos, e somente chegar à cidade pela manhã do dia seguinte. Além da exaustão que naturalmente nos tomou, o jantar que recebemos na madrugada, no tal hotel, não se assentou muito bem em meu estômago, e uma virose tomou conta de mim, que viria a me acompanhar ao longo dos sete dias em que estaria em solo uruguaio.
O sonho de acompanhar o Mundial Poético com litros de cerveja e quilos das melhores carnes foi por água abaixo no instante em que pousei na cidade e entendi que estava doente.
A experiência, portanto, tornou-se pra mim objetivamente o prazer de descobrir o trabalho de poetas de países como Chile, Argentina, Holanda, Peru, Espanha, França, Colômbia, Estados Unidos, México, Uruguai e muito mais – o que tornou tudo ainda mais singular e especial, apesar das cólicas e do mal estar que eventualmente me tomavam. Não podia, porém, fraquejar, e mesmo me sentindo mal, fui começar a participação no Mundial.
Logo na abertura, a maioria dos poetas envolvidos com o festival – eram, no total, mais de 30 artistas – subiu ao belíssimo e antigo palco da Sala Verdi, um edifício em estilo neoclássico inaugurado em 1894, por onde diversas orquestras e espetáculos nacionais e internacionais se apresentaram ao longos dos últimos 123 anos.
Um teatro clássico, com o peso e a aura que tais locais possuem em qualquer lugar do mundo, foi nosso palco de entrada no festival. Os brasileiros abriram o festival, com os dois Pedros e Amora, que já haviam participado das outras edições do Mundial, lendo os primeiros poemas. Eu e Leprevost, estreantes, nos apresentamos orgulhosamente na segunda parte do evento de abertura. Todos leram alguns poemas, e assim foram feitas as apresentações formais entre os participantes.
Curitiba elegeu uma alma sem luz ressurgida do pior do passado, embarcando num slogan que dizia ‘volta Curitiba’. Quer dizer, Curitiba parece não só não querer avançar, como também preferiu retornar ao passado.
As noites terminavam quase que invariavelmente no Santa Catalina, um típico boteco que poderia ter saído das ruas de Botafogo, no Rio de Janeiro, ou do centro de São Paulo, onde o querido garçom Marques nos presenteava com sua simpatia e com ampolas geladas da cerveja Patrícia ou garrafas de vinho Don Pascual. Eu, porém, confesso que tentei, mas minha virose não me permitiu maiores ambições boêmias desde o primeiro dia. Estar, no entanto, rodeado de poetas do mundo todo, devidamente embriagados, já era alegria suficiente.
Fazer parte de um grupo de poetas brasileiros em um festival que, apesar de internacional, era formado em sua maioria por artistas que trabalham em espanhol, revelou-se também uma experiência singular, que diz um tanto sobre a relação cultural entre o Brasil e nossos vizinhos.
Por um lado, em grande parte ignoramos a produção literária e musical de países obviamente ricos e cheios de grandes artistas como a Argentina, o Chile, a Venezuela e o próprio Uruguai – e, assim, perdemos um interessante, importante e renovador intercâmbio com artistas tão próximos de nossa realidade.
Por outro lado, a grandeza geográfica do Brasil e a imensa produção cultural brasileira – consumida intensamente por nossos irmãos da América do Sul – torna nosso país ao mesmo tempo uma força incontornável (excluir o Brasil, afinal, de qualquer jogo literário simplesmente por falarmos outra língua é abrir mão de um gigante da literatura) e uma espécie de influência invasiva, quase imperialista, no continente. De certa forma, o Brasil é como os EUA para o resto da América do Sul: um país grandioso, dono de uma das maiores produções artísticas do planeta e, ao mesmo tempo, culturalmente dominante e autocentrado.
Se, como em qualquer outro contexto, o inglês também funciona dentro da poesia falada como uma espécie de esperanto, ou o mais próximo de uma língua universal – nem todos falam com fluência, mas para poetas americanos e holandeses, por exemplo, a língua inglesa abria as portas da compreensão – nós, enquanto brasileiros, estávamos ao mesmo tempo tão próximos do castelhano e distantes por completo, sendo o único grupo a falar poemas em português. Rapidamente, porém, ficou claro que a compreensão era absolutamente viável, e que a troca entre os trabalhos e idiomas mais diversos era fluida como se todos falássemos uma mesma língua.
A agenda do festival era intensa, com apresentações diárias em teatros e espaços variados de Montevideo, como o Centro Cultural de España, El Peregrino, o Museu Zorrila e o incrível bar Fun Fun, que nos serviu uma deliciosa e inebriante cachaça de uva. Participar de um festival de poesia em outro país nos permitiu conhecer esses diversos centros culturais, ainda que a virose e a programação de certa me impedisse de visitar locais turísticos. Cumprir tal agenda estando doente – e, confesso, insistindo em provar diversas vezes a tal cachaça de uva – acabou incluindo na programação a visita a um local um tanto exótico para um turista: um hospital público.
Depois de quase quatro dias de virose, ainda que minha condição não tenha piorado, entendi que era hora de parar de seguir os conselhos traduzidos ao portunhol dos mais diversos farmacêuticos de Montevidéu e enfim receber o diagnóstico apropriado de um médico. Passadas algumas boas horas em uma sala de espera limpa e simples, fui atendido por uma jovem médica, que vaticinou: sim, é uma virose. O remédio que você está tomando (receitado displicentemente por mim mesmo em parceria com um dos farmacêuticos da cidade), no entanto, está piorando seu quadro, e não, não há muito o que fazer além de se hidratar como um maníaco e esperar – e abandonar o tal remédio.
Minha sorte foi que o simpático hotel Splendido, onde a maioria de nós estava hospedada, oferecia uma aconchegante cozinha, onde a Amora pôde preparar a canja de galinha que me salvou. Comecei a melhorar no dia seguinte, mas o final de semana já chegava, e com ele o Mundial Poético de Montevideo de 2017 aproximava-se de seu fim.
Ao longo da semana, durante as apresentações, os poemas apresentados variavam completamente, entre estéticas reflexões existenciais e imagéticas – com pouquíssimos poemas de amor – , poemas sonoros e experimentais, e uma vasta presença de poemas políticos, relacionando-se em crítica intensa com o apocalíptico cenário das Américas e mundial atual. Nomes como Jaap Blonk, da Holanda, Angela Segovia, da Espanha, Joseph Makkos, Bill Lavender e Mark Statman, dos Estados Unidos, Oscar Saavedra, do Chile, Celeste Dieguez, Maria Eugenia Lopez e Claudio Martinez, da Argentina, John Martinez Gonzalez, do Perú, entre muitos outros, formaram junto de nós, brasileiros, o elenco que diariamente se apresentou gratuitamente nesses tantos palcos uruguaios.
A condução de todo espetáculo foi feita através do talento e do afeto de Martin Barea, que reuniu como um cicerone, um querido amigo e antes de tudo um poeta (que por esforço, capacidade, talento e necessidade pessoal conseguiu pela terceira vez reunir nomes da poesia do mundo todo para realizarem um incrível festival internacional, como um desses agitadores de que toda cidade precisa e merece) essas fatias diversas do mundo para, juntas, falarem poemas e se encontrarem poeticamente.
No último dia, boa parte do grupo apresentou-se no espetacular Espacio de Arte Contemporáneo, um antigo presídio, o mais antigo do Uruguai, que reformou parte de suas instalações para receber um museu e no qual, no antigo pátio onde os presos tomavam sol, um palco foi instalado para as apresentações conclusivas do Mundial. O último dia de festival foi aberto com show inesquecível de Martin cantando canções acompanhado ao violão, e foi a primeira vez que todos nós, brasileiros, nos apresentamos juntos (nos outros dias apresentávamos ora sozinhos, ora em duplas e trios).
Entre poemas falados e algumas canções, nos despedimos do festival – com uma ligeira passada pela festa de encerramento – para, na manhã seguinte, nos despedirmos também de Montevidéu, uma cidade especialmente livre, e de tal forma elegante nessa liberdade conquistada, que é como se ilustrasse um estado natural, nada extraordinário diante de um jovem fumando maconha da mesma forma que se fuma, aqui no Brasil, um cigarro, por exemplo.
Assim também foi com os poemas, recebidos com a naturalidade e, ao mesmo tempo, a forte singularidade libertária que a arte deve possuir, em uma pequena cidade repleta de cultura e espaços livres para a arte, que visitei pela primeira vez, e que me despedi certo de que volto em breve. (Vitor Paiva)
Em 2012, a Gazeta do Povo afirmou que você era “o novo poeta pop de Curitiba”. De lá para cá, o que mudou? Esse rótulo ainda lhe cabe – se é que, em algum momento, você o aceitou?
Nunca tomei para mim este rótulo, embora tenha entendido na época o motivo dele e recebido o elogio com gratidão. Mas não gosto de rótulos, nem de quesitos comparativos, nem de listas de melhores. Entendo que foi um gesto amoroso e de imenso entusiasmo feito pelo jornalista Luiz Claudio Soares De Oliveira. Ele trabalhava na Gazeta do Povo, no “Caderno G”, e assistiu ao meu show na Virada Cultural, em 2012, e então lacrou “Leprevost é aclamado novo poeta pop de Curitiba”, evocando e trazendo para perto em alguma medida a figura de Paulo Leminski.
Sem modéstia, o show foi realmente um acontecimento. Aquela Virada foi arrebatadora, assim como a de 2011 havia sido, com A Banda Mais Bonita da Cidade encabeçando um lugar de destaque nos palcos principais e de reconhecimento pelo público, com várias bandas e artistas (os que são chamados de “locais” – alcunha que não me agrada) podendo viver algo semelhante. Havia esperança e entusiasmo no ar, havia movimentação, troca, polêmica, crítica, paixão, tudo o que uma cena precisa para efervescer. Um desejo coletivo de ver as produções feitas em Curitiba tomarem espessura e vulto maiores em relação ao Brasil, espalhando-se por ele afora.
Houve quem não compreendesse, quem jogasse contra, um jornalista de mentalidade reduzida nos acusou de compadrio, eu respondi na própria Gazeta dizendo que o que ele chamava de compadrio eu chamava de comunhão. E até hoje me sinto em comunhão, não só com os meus amigos mais próximos, mas com uma Curitiba amplamente artística. Naquele período havia um time de jornalistas no “Caderno G” muito atentos, fazendo o corpo a corpo com o dia a dia cultural da cidade. Muita gente estava produzindo e tendo destaque. A Karol Conka ainda estava subindo na direção das estrelas, e ela subia rápido. Vivemos momentos lindos.
Muitas vezes vimos a Curitiba que exubera vencer por 7 a 1 a Curitiba provinciana, a Curitiba autofágica. Aqueles artistas todos, os jornalistas, os produtores, todo mundo continua jogando. O Brasil está reprimido como um todo, as forças repressoras são insistentes, mas não são capazes de segurar a urgência dessas gritos todos. O que é feito em Curitiba ainda continua sendo poderoso. Apenas para dar um exemplo me chega agora, você já ouviu as mulheres da banda Mulamba [leia nossa entrevista com a banda]? Pois é, elas são o que há. Ademais, há tantos poetas, prosadores, tradutores tão mais pops do que eu por aí. Cita-los seria redundar a afirmação. Que eu a redunde então com três nomes inevitáveis: Luci Collin, Guilherme Gontijo Flores, Caetano Galindo. Eles sim já ganharam o Brasil. Sentir-se ilhado em Curitiba, acho que é algo senão totalmente superado, em vias de.
Qualquer um de nós que hoje reclame de invisibilidade estará sendo injusto com aqueles que vivem em real condição de invisibilidade social, sujeitas ao frio, a fome, a violência física, a dependência química, para dizer o mínimo.
Você possui uma produção teatral consistente como escritor e como ator. Que caminhos te levaram ao teatro? De que maneira essa estética repercute e reflete na sua literatura – seja na poesia ou na prosa?
Não sou um ator que escreve. Sou um poeta que precisou sentir a poesia na radicalidade do corpo. O teatro era o único lugar viável para o que eu necessitava. Há outros espaços, sem dúvida, para tal radicalidade, os esportes seriam um exemplo. Eu tive a sorte de ser escolhido pelo teatro, que é a poesia encarnada, a poesia levantada do papel, a música que toca na carnalidade. No meu fazer, o teatro é a poesia, a poesia é o teatro, são acontecimentos que se amam e se doam um ao outro. Concebo a ideia do poeta de modo bastante amplo e nada ortodoxo. Quando vejo Kazuo Ohno dançar, vejo um poeta fazendo poesia. Do mesmo modo, um poeta em ação é o ator Marlon Brando em Apocalypse Now, ou a atriz Juliett Binoche em Os amantes da Pont-Neuf. Um poeta é o dramaturgo Valère Novarina lendo em público a sua dramaturgia. Novarina, aliás, para quem “o teatro é o lugar onde fazemos aparecer a poesia ativa, onde mostramos de novo aos homens como o mundo é chamado pela linguagem.” Para ele “a poesia é como um golpe desferido contra o mundo por dentro.” Acredito e tento praticar tudo isso. E me sinto apartado dos literatos, embora os admire imensamente. A minha poesia vem do corpo, do fazer do corpo, do corpo dançando na sala de ensaio do teatro. Só conheço o poema agido, o poema que se faz na anterioridade do corpo, nos lugares dos impulsos, para ficar com Grotowski. São poemas de um dançarino, de um poeta dançador.
Curitiba é um grande celeiro literário, porém, o curitibano médio não consome a produção local. A melhor maneira de ser invisível em Curitiba é fazer literatura?
Sem dúvida há maneiras mais eficazes de ser invisível em Curitiba do que fazendo literatura. A literatura, aliás, parece passar por um bom momento aí por estas plagas, a despeito de não haver talvez (onde há?) número significativo de leitores entre o que você chama de “curitibano médio”. A não ser que você seja o Batista de Pilar, que além de poeta tem passado por uma situação de vida complicadíssima. E é bom lembrar antes que seja tarde demais, ele não é um personagem do Dalton Trevisan. Ele não é um personagem de ficção. Mas é assim que a República de Curitiba trata os sensíveis. Ruínas de vítimas do álcool. Lendas caminhando para o sacrifício. Lembra do “suicidado da sociedade”, do Artaud, escrevendo sobre Van Gogh? Eu vi no final de dezembro, depois no meio de janeiro o poeta Batista caído, sem banho, feridas nas pernas, na frente da Livrarias Curitiba. Terrível ironia, nenhuma obra sua ali dentro.
Somos covardes nós os que admiramos o Batista e não sabemos como socorrê-lo. Dizem não haver jeito. Dizem que ele não quer ser ajudado. Eu vi o poeta Batista esmolando no Café Crema, descalço, sujo. Pediu cachaça no balcão. Aqui só vendemos café, informou a garçonete. Ele se dirigiu às mesas da calçada. Você não pode ficar, moço, está importunando os clientes. Ele empurrou a garçonete: sai da frente, mulher, esta guerra é entre homens. Os clientes se levantaram com medo, incomodados. Quem ali sabia que se tratava de um dos mais importantes poetas da cidade? Cena triste para quem viu Batista corado, com mais peso, bem alimentado, roupas limpas, trabalhando. Cena terrível para quem viu o Batista doce e gentil, as suas frases pontuadas pela expressão “homem de deus”, característica tão sua. Só que o poeta está em rebelião. A única defesa do poeta é a manifestação poética, este é o seu modo e meio de estar vivo. Sem isto, ele adoece. Com isto, ele vive, ainda que jamais deixe de ser um desamparado.
Sabemos que a angustia profunda pode vir a nos alucinar. Eu não culpo o Batista. Se fosse para culpar algo ou alguém, antes haveria uma enorme lista: o mercado, o ministro da fazenda, os golpistas, o presidente ilegítimo, o judiciário seletivo, etc. É como escreveu Carl Solomon: “nosso mundo tornou-se, realmente, um mundo sem poesia e é por isso que nossas cidades parecem manicômios ao ar livre.” Quando penso na poesia do Batista, penso que ela tem uma qualidade rara e admirável, que é a de transformar a experiência vivida em sabedoria, é uma poesia meditativa. Tem muita beleza no seu trabalho. E é tão difícil ser um ser humano assim num mundo em que tudo concorre para a insanidade cotidiana, para o crime, para a corrupção, para a injustiça, para a instabilidade, a precariedade. Manter elevado o próprio nível de dignidade é tarefa árdua. Tudo isso precede a demência.
Lá atrás diziam “no futuro haverá uma sociedade mais justa.” Pois bem, daqui, de depois-do-futuro, afirmo que não é o que consta. Qualquer um de nós que hoje reclame de invisibilidade estará sendo injusto com aqueles que vivem em real condição de invisibilidade social, sujeitas ao frio, a fome, a violência física, a dependência química, para dizer o mínimo. Ademais, o “como tornar-se invisível em Curitiba”, do Jamil Snege, hoje é apenas um folclore divertido entre os artistas.
Você tem trabalhado desde 2011 na Trilogia da Geada – E se contorce igual a um dragãozinho ferido (2011) e Dias nublados (2015) – uma espécie de ode crítica à cidade. Quando deve sair o volume que encerra a tríade?
Há bastante material escrito, porém pouco organizado. Não há previsão de lançamento. A minha escrita acontece de modo caótico. Organizar, compor, montar é sempre mais difícil do que escrever, é o verdadeiro escrever. São várias etapas exigentes artisticamente para se chegar na obra. Desde a mudança para o Rio fui sugado, desejei ser, pelo teatro e pela poesia, com tal visceralidade que não houve espaço para o romance. Preferi não forçar, respeitar o tempo. O meu reencontro com o teatro e com a minha poesia em sua manifestação mais essencial, como há vinte anos atrás, pareceu-me de uma ordem de revolução interna tal que seria um erro não respeitar.