Mariana Valente não conheceu sua avó. Mas, desde pequena, foi se dando conta da importância dela, quando seus livros eram indicados pelos professores na escola e estranhados pelos coleguinhas. A artista visual, que é neta de ninguém menos que Clarice Lispector, uma das maiores escritores da literatura brasileira e mundial, sentiu inicialmente a sua descendência como uma responsabilidade. Mas esse peso foi se tornando mais leve à medida em que foi ficando claro que o universo das duas – Mariana e Clarice – conversavam e se fundiam.
Especializada em colagens, Mariana Valente já tem muitas obras produzidas a partir da obra da avó. A mais recente é a exposição realizada para o Projeto Centenários, que decorou a Estação Luz do metrô, em São Paulo, com muitos trechos de sua profícua literatura, que comove e perturba leitores pelo mundo todo. Neste entrevista à Escotilha, Mariana Valente fala sobre o próprio trabalho e com os diálogos que ele possibilita com Clarice Lispector.
Escotilha » Eu queria fazer uma pergunta que talvez você ouça muito: sobre como é ser neta de Clarice Lispector. Quando você descobriu a obra de sua avó?
Mariana Valente » Ser neta de Clarice sempre foi e continua sendo um grande mistério. A gente não chegou a se conhecer, mas fomos tendo encontros de outra ordem ao longo da minha vida.
Um dos momentos muito marcantes para mim foi quando eu fui convidada a ilustrar A Mulher que Matou os Peixes. Quando eu entreguei o projeto, meu pai encontrou no acervo dele a primeira edição do livro com um autógrafo da Clarice escrito a mão que dizia: “Aos meus filhos e meus netos, com amor, sua Clarice”. Sendo que, nessa época, meus pais ainda não pensavam em ter filhos.
Então a ideia de que eu, trinta anos depois, tendo feito uma faculdade de Design e tendo me encontrado como uma artista visual, pude ilustrar A Mulher que Matou os Peixes com essa dedicatória a mim, que eu inclusive incluí no livro, é algo muito especial.

E como foi se dar conta da importância dela na cultura?
Desde pequena, meus pais começaram a ler os livros infantis de Clarice para mim. Mas acho que foi quando comecei a frequentar, ainda criança, as primeiras peças de teatro adaptadas de obras de Clarice, que eu comecei a perceber a grandiosidade da minha avó.
E eu lembro de sair sempre muito curiosa dessas peças. Aos poucos, na adolescência, comecei a ler por conta própria. Tentei ler aos quinze anos A Paixão Segundo G. H., mas fiquei parada na introdução que ela faz a possíveis leitores, para que seja lido por pessoas com alma já formada. Fiquei ensaiando se deveria ler aquele livro naquele momento, comecei e desisti porque considerei que não estava com a alma já formada (risos).

Aos vinte e poucos anos, eu recebi o convite para ilustrar A Paixão Segundo G. H. para a fábrica portuguesa de porcelanas Vista Alegre. Tinha acabado de casar, e saído da casa dos meus pais há cinco meses. Resolvi então ir para uma residência de três meses em Portugal, para mergulhar no livro.
Foi de um desamparo total. Fiquei com muito medo, achando que não conseguiria entregar o projeto por conta do susto que tomei com a leitura. Isso se deu até o momento em que me deparei com uma frase no livro que me “autorizou” a deixar sair o meu trabalho.
A frase era: “Desamparada, eu te entrego tudo – para que faças disso uma coisa alegre”. E eu estava lá, na Vista Alegre, tentando fazer uma coisa alegre, com beleza, através de um texto que me levava para um lugar de susto existencial. Mas depois dessa frase, consegui deixar o projeto sair.
“Clarice abria fendas simbólicas e criava cortes subjetivos que revelavam o oculto no texto, no cotidiano e na nossa própria vida”.
Mariana Valente
Quando eu era mais nova, tinha sempre esse susto quando descobriam que eu era neta da Clarice. As pessoas ficavam muito emocionadas. Lembro que, na época da escola, também li os livros dela e, na hora das provas, os colegas perguntavam coisas para mim pois não entendiam.
Então, ao mesmo tempo que era uma mulher muito admirada, meus amigos ficavam também angustiadíssimos com a dificuldade das obras. Eu ficava com essa indagação: quem é essa mulher, que incomoda e ao mesmo tempo apaixona tanto as pessoas?
A sua obra de colagem se caracteriza por uma delicadeza e uma força, algo que parece dialogar também com Clarice. Queria saber como você acha que suas obras conversam.
Eu sinto que a leitura da Clarice é sempre muito pessoal. Quando lemos, temos essa sensação que ela está falando com a gente, pois a gente se vê muito no texto. Comigo não foi diferente: fui me apaixonando à medida que fui lendo e conhecendo. Um dos ensinamentos valiosos que peguei do texto dela é como às vezes uma pergunta bem feita importa. Ela era uma pessoa que estava sempre se questionando, em busca de respostas que às vezes não vinham. Mas a procura era tão rica, de tanta entrega, que por vezes a resposta final perdia a relevância.
Isso é um aprendizado que peguei para mim, na minha jornada pessoal e profissional. A colagem para mim está nesse lugar, de um fluxo e de uma entrega à intuição que nunca sei como vai terminar. Eu começo a colagem a partir do momento em que vou encontrando esses elementos que vão contar a narrativa que estou procurando.
Tem também algo do improviso, do acaso, do rasgo, que muitas vezes revela a parte oculta da imagem. Nesse sentido, muito da escrita da Clarice me inspira na minha própria jornada como artista visual, nesse mergulho que venho dando.
Você já fez outros trabalhos fazendo leituras visuais de Clarice Lispector. Qual é a diferença dessa mostra na Estação Luz?
Ano passado (2024) fiz outro projeto pelo qual tive muito carinho, chamado “Caminhão de Histórias“, que envolveu a criação de um caminhão de 15 metros que circulou por várias cidades no Brasil, incluindo lugares periféricos onde dificilmente chega esse tipo de projeto.
Era focado ao público infanto-juvenil, então fiz colagens pensando nas histórias infantis da Clarice. Ali, eu procurava os animais das histórias, os personagens, incluí uma imagem da Clarice criança no pátio da casa em Recife, rodeada de bichos que aparecem em A Mulher que Matou os Peixes.

Acho que a exposição do Projeto Centenários tem outra linguagem. Fomos percebendo que o importante ali era o texto dela chegar no espaço tão rico. 700 mil pessoas circulam diariamente na estação da Luz, então todo tipo de pessoas passa por ali.
A ideia foi pensar que as Macabéas e G.Hs. estão no mesmo vagão, cada uma a caminho do seu trabalho, e por isso propormos uma arte mais universal, focando nos textos que fomos espalhando pelas pilastras e vagões. Me apoiei muito no elemento do rasgo, que é muito simbólico na colagem.
Foi um processo todo analógico e muito experimental, me guiando pelas cores do Projeto Centenários, o que me possibilitou trazer uma Clarice muito mais vibrante e colorida. Acho que Clarice tinha essa característica: ela escrevia como quem cria um rasgo na linguagem. Ela abria fendas simbólicas e criava cortes subjetivos que revelavam o oculto no texto, no cotidiano e na nossa própria vida.
Tenho a sensação de que ler Clarice é sempre um susto bonito, familiar e estranho ao mesmo tempo. E, para mim, o rasgo tem esse gesto de urgência e improviso, provocando a sensação de tocar no avesso das imagens e das coisas. Penso que Clarice também tinha essa urgência quase tátil, de tocar na pele da palavra e atravessar as camadas superficiais.
Quais são os seus próximos projetos?
Nesse momento, estou em um projeto que irá refazer todas as capas dos livros da Clarice, para uma editora da Espanha. Também estou produzindo novas capas para Rocco. Há novidades que ainda vão chegar esse ano que têm essa costura entre o meu trabalho e o da minha avó. Sinto cada vez mais prazer e leveza em me encontrar com ela por meio da minha estética.
No começo me parecia uma grande responsabilidade, mas com o tempo fui encontrando maneiras de colocá-la também no meu universo, trazê-la para a minha linguagem. Isso me traz um grande carinho e conforto.
Poderia nos contar alguma história pouco conhecida de Clarice?
Tem uma história que marcou muito minha família que é essa: a Clarice, antes de morrer, deixou registrado verbalmente (e não escrito, como foi noticiado em uma matéria) que, quando se fosse, ela ia voltar como uma esperança, aquele bicho verde (trata-se de um inseto verde com antenas longas e que se assemelha a uma folha). E, em muitos momentos da nossa vida familiar, a gente recebeu a aparição de uma esperança em situações muito inusitadas.
Uma delas foi quando meu pai foi se operar. Quando a gente chegou no quarto, tinha esperança pousada na porta do quarto. Obviamente, não é comum ter insetos circulando dentro de hospitais. Em outro momento, na adolescência, estava discutindo com minha mãe no carro e pousou uma esperança no vidro. A gente estacionou e começou a chorar emocionadas.
São situações inacreditáveis demais para ser apenas coincidência. Em alguns momentos, sentimos a presença muito forte de Clarice nesse lugar mais esotérico que tem tudo a ver com ela.
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