Uma das vozes mais interessantes e inventivas da literatura brasileira, o escritor gaúcho Reginaldo Pujol Filho faz de Não, não é bem isso, seu livro mais recente, um passeio pelo abismo e um diálogo entre os diferentes.
Explorando as contradições que dão forma ao cotidiano, e escrito ao longo de 12 anos, os contos que compõem a obra se debruçam sobre temas delicados e urgentes, como a relação do sujeito com a Arte, a tomada de poder pela religião e fragilidade da convivência em sociedade.
Buscando uma literatura que descortina as certezas, dinamita os limites da linguagem e se opõe ao caretismo que está impregnado hoje em dia, Pujol cria aquela que, sem dúvida, é sua obra mais pulsante e contundente. Se por um lado os textos são diferentes entre si, por outro é essa diferença que cria ambiguidade e unidade no livro.
Pujol, que esteve em Curitiba em novembro, conversou com a Escotilha sobre o processo criativo de Não, não é bem isso, a possível simbiose entre Artes Visuais e Literatura e os enigmas que o artista carrega consigo e transforma em sua obra.
Confira abaixo o bate-papo.
Escotilha » Diferentemente dos seus outros livros, Não, não é bem isso reúne textos publicados em revistas e sites. Ainda assim, possuem uma ideia de unidade, principalmente, na questão da investigação, um “e se…”. Qual é a força-motriz da sua literatura? Que busca é essa que você empreende em cada relato?
Reginaldo Pujol Filho » É legal ver que você encontrou uma chave no conjunto e que, a princípio, eu não tinha achado. Eu reuni os textos pela diferença. Eu olhei para essa minha produção de dez anos – e eu tinha bem mais textos do que isso, aqui a gente tem 13, mas eu estava escolhendo entre 30 produções – e estava cansado do que fazia até então. Era tudo um projeto, tudo muito rígido e conceitual. Depois eu pensei que tinha até uma coisa política, a gente está buscando só os iguais. Aí, percebi que tem um subtexto de pegar os diferentes, olhar esses diferentes em contraste e tentar entendê-los.
Isso é o meu modo de pensar. Às vezes a gente não percebe, mas já estava há um tempo trabalhando e era um conjunto de textos que tinha mais ou menos 12 anos. Eu observei que se estabelecia esse panorama, de algo que eu sempre preguei – mas a gente nunca para para olhar se está cumprindo –, e que era essa coisa quase neurótica de não me repetir. E de não me repetir seja temática ou esteticamente. Isso me dá um pouco de medo porque eu não sei até quando eu vou aguentar e se, de repente, não vou me esvaziar, chegar em um momento em que não tenho mais para onde fugir de mim mesmo.
Então, eu acho que tem sim, um pouco dessa questão das forças-motrizes. E que é a busca por alguma coisa que me inquiete. Tu falou dessa coisa do “e se”… e acho que eu trabalho sempre muito em cima de perguntas, perguntas que vão em diferentes planos. É possível contar uma história desse jeito? Isso é uma pergunta que está sempre me movendo. Comento um texto que você ainda não teve acesso, porque é o meu doutorado, e que parte da observação de textos de exposições e de como existem narrativas ali dentro. Então, vem uma pergunta: eu posso usar isso para fazer literatura? E aí, eu me debrucei sobre isso para fazer literatura.
Eu sigo com essas perguntas estéticas, mas é também sobre contar histórias. Pense em um texto como o “SAI”. Um dia gente vai se infectar com os computadores? A gente não está muito longe disso: as pessoas já implantam chip. Somo um pouco ciborgues, como diz um escritor catalão chamado Jorge Carrión, que eu gosto muito.
O primeiro texto [“Ideias que podem aparecer na cabeça de um sujeito sentado em uma cadeira”] é uma grande pergunta que eu me faço: o que nos mantém em paz diante de tanto conflito? A gente vive em paz, se a gente parar para pensar. Olha o nível de submissão que as pessoas se impõem para encontrar a paz. Nesse caso, eu pego um vigia de uma festa, mas tantas pessoas estão submetidas a tantas durezas na vida e seguem respeitando o horário do ponto, o sinal vermelho, o dia 5 para pagar a conta. Por que é que a gente não joga tudo para cima?
Acho que se não me incomodar de algum modo, eu não vou escrever. Eu não sou, por exemplo, um cara que tenha um tema muito específico, como alguns escritores, e vou trabalhar aquele tema de diversos ângulos. Para mim, é sempre aquilo que mexe com a minha frequência naquele momento, tem que tirar do lugar, me fazer olhar.
Nesse processo de experimentalismo, assim como a Veronica Stigger, por exemplo, você usa elementos paratextuais – como uma página da Wikipedia, fotografias – para compor a sua narrativa. Isso me faz pensar, quais são os limites e os caminhos possíveis para a construção literária?
Eu acabei de falar que não tinha perguntas, mas talvez essa seja uma das perguntas centrais: até onde a gente vai? E eu estou num momento, agora, de refletir com um pouquinho de cuidado sobre isso, e parando nessa pergunta de limitações e possibilidades da literatura. E isso até está me fazendo passar por um momento mais reflexivo e menos produtivo. Eu estou escrevendo muito pouco esse ano porque talvez eu tenha entrado em um caminho que me fez olhar muito para a arte conceitual.
Tem algo que eu percebi, e até quero escrever um pouco sobre isso, que é como o campo das artes visuais. Há cem anos, começou-se a questionar qualquer ponto de definição sobre o que é arte e, principalmente, sobre os seus suportes. A gente pode pensar assim na tela e no pedestal da escultura, mas também uma escultura no chão e romper os limites da tela. O primeiro movimento a gente percebe ali nos anos 1910, e a partir daí rompe de vez – rompe os materiais – e passa a não ter um definidor muito nítido do que é arte. Até um certo momento era tinta, depois a moldura, o bronze, o mármore. Por isso, chega um momento em que a gente não sabe mais o que é arte e nos coloca em uma situação muito instável, mas também muito produtiva para quem consegue pensar sobre isso. Você precisa pensar sobre o que é arte para lidar com a arte. É um eterno pensar sobre o que é arte.
E esse é o meu modo de entender as coisas. Eu gosto de pensar sobre a literatura. Eu sou um cara que busca essa retroalimentação de teoria e prática – que para mim, talvez, nem seja uma retroalimentação, mas uma jornada conjunta. Quando eu cheguei no meu doutorado – para escrever sobre artes visuais –, eu passei a reparar nisso. Uma das minhas perguntas era: como as artes visuais podem romper fronteiras e abraçar outras técnicas? Inclusive, abraçam muito da literatura. Eu tenho um ensaio escrito sobre a quantidade de exposição que a gente encontra que tem personagem, que narram, que usam da palavra e da argumentação, e de vários recursos que a gente pensa que são da arte da palavra, mas que são assumidos pelas artes visuais.
O contrário é que a literatura se transformou em um campo muito conservador, muito careta. No mesmo momento em que os suportes estão sendo mobilizados pelas artes visuais, a gente viveu o Mallarmé espalhando o poema na página. Ele está questionando a estrutura da página – e que é, sim, muito interessante. O Joyce está questionando a estrutura do discurso. A gente pode pensar em várias coisas nesse sentido, mas fica ali. Parece que o passo adiante, que é explodir, não foi dado. A gente não explodiu o livro – ele ainda é o nosso animal sagrado. A gente não consegue sair do livro. Isso ainda é muito forte.
Como esse papo do Paulo Guedes, de que o pobre só é pobre porque não sabe poupar. Que conversa é essa? O rico, na maioria das vezes, só é rico porque já nasceu rico, com tendência à riqueza pelo lugar que nasceu, pelas condições que teve, ou pela grana que ele já tinha.
Se pararmos para pensar, nem o e-book pegou. A maneira como o texto se comporta no seu livro – em especial no “Síndrome de Amnésia Adquirida – SAI” – é uma forma de colocar em prática isso que você está falando.
Eu acho que eu já praticava isso sem pensar, sem formalizar um pensamento, mas agora está ficando muito evidente para mim. Tem até uma coisa que eu estou escrevendo – ainda está guardada, mas eu quero botar isso para discussão – que é, por exemplo, o que eu acho que aconteceu com o e-book e as páginas da internet. É uma confusão entre livro e literatura. Eu acho que o e-book e as páginas da internet têm se prestado, atualmente, à literatura. Então, é o texto literário que se reproduz tanto ali quanto aqui. O texto do Machado de Assis – e isso não é uma crítica, até porque eu sou apaixonado por Machado de Assis – se comporta da mesma maneira no livro, no e-book e na página da internet. É texto: leitura da esquerda para a direita, de cima para baixo, frase e palavra. Se a gente pegar o “SAI”, e colocar no e-book, tem que ser repensado. Se você pegar Só faltou o título – e foi esse livro que me deu o gatilho para pensar nisso, porque a editora me mandou o e-book e dava para dar zoom na página, alterar a fonte –, todos aqueles depoimentos, que tem que ter cara de depoimento, estavam passíveis de ser adulterados. Ali, eu percebi que não fazia só literatura, mas eu estava pensando o livro.
Eu acho que a Veronica [Stigger] é uma pessoa que pensa o livro, a Patrícia Portela [escritora portuguesa] pensa o objeto livro. Tem muitas pessoas que são autores de livros e, não propriamente, de literatura. Algumas pessoas têm pensado que o livro começa na capa e não no primeiro texto. Mas tem quem escreve literatura e está tudo muito bem. Não é assim que são seres superiores os que pensam em livro, não é isso. São só modos de pensar. E acho que isso começa a nos aproximar dos campos das artes visuais para que a gente possa refletir sobre a superfície em cima da qual você trabalha. Deixa de ser apenas um contador de histórias, mas alguém que pensa em como as coisas se comportam aqui.
E aí, eu montei uma exposição que narra ficção. A pergunta que fica, de onde o processo começa, é: isso é exposição? Isso é literatura? É arte? Onde é que fica isso? E eu acho bem legal que não se saiba responder facilmente. Eu olho para um artista chamado [Joan ] Fontcuberta e começo a pensar que ele não é um artista, mas um escritor de exposições. Tem ficção não exposição dele. Não é como você ter três quadros do Van Gogh e você poder comprar um quadro e dizer: eu tenho um Van Gogh. As coisas que estão no Fontcuberta são roupas, fotos que ele fraudou para contar uma história. Se você comprar uma roupa de uma exposição, não pode dizer: aqui eu tenho um Van Gogh e aqui eu tenho um Fontcuberta. Eu vou ser obrigado a dizer: aqui tem um Van Gogh e aqui tem um uniforme que faz de uma exposição, que conta tal história. É como arrancar a página de um livro. Essa aqui é a página de um livro que conta uma história tal, tal e tal.
Eu tenho pensado que depende muito do que a gente quer pensar sobre literatura. Nesse momento, a gente está falando de literatura como narrar histórias. Se você pegar a poesia, a gente amplia um pouco o espectro.
Nesse sentido, Bienal de Curitiba a exposição Festa dos Dias Laborais, do Juan Luis Moraza, é um grande ensaio sobre a questão do trabalho e as relações que o trabalho impõe.
Se você sente esse romper com o suporte, a gente começa a entrar num baralho, quase uma esgrima, com o campo das artes visuais para dizer que isso é literatura, ou não, isso é arte [visual]. Veja, as artes visuais fazem parte da literatura. Temos o livro de artista, por exemplo. Se esse livro aqui [e aponta para Não, não é bem isso] é literatura, por que um livro de um artista não é literatura? Isso me incomoda muito e eu não tenho uma resposta.
É interessante, porque temos artistas que fazem esse cross-over, entre literatura e artes plásticas, como o Iberê Camargo, que passeia pelos dois campos.
Tem o Nuno Ramos que é ponta de lança nessa história. Eu citei a Patrícia Portela, de quem eu acho muito interessante observar as manifestações, por exemplo, em A Coleção privada de Acácio Nobre, que é um espetáculo também. Mas não quer dizer que é ler, digamos, o Fazenda Modelo, do Chico, e depois assistir ao espetáculo. O livro é uma coisa e o espetáculo outro. É como você se manifestar de duas formas diferentes. E é uma investigação também.
Parece que está se abrindo um espaço, e eu começo a olhar para uma produção que não é só minha, mas da Verônica, da Patrícia. Uma outra portuguesa, que não está publicada no Brasil, que é a Joana Bértholo. Tem o Ricardo Lísias. O Enrique Vila-Matas, pela chave da performance, que a gente nunca sabe onde acaba um texto e começa uma entrevista do Vila-Matas. Tem a Marília Garcia, no campo da poesia.
Parece que existe toda uma coisa geracional, se a gente conseguir colocar o Vila-Matas, com quase 70 anos, e a Marília Garcia na mesma geração – mas é porque estão vivos e, consequentemente, estão mexendo com isso. Eles estão bagunçando a noção que não foi bagunçada há cem anos do suporte, da literatura começar num livro e terminar numa entrevista ou continuar em algum outro espaço.
De algum modo, isso já supera o e-book. Acho que o e-book é um negócio que ficou para trás. Ninguém se dedicou a ser autor de e-book, e não vou ser eu, porque não interessa, não nesse momento. Parece que falta alguém que queira escrever um e-book, não um livro que vai virar e-book. Alguém que explore esse suporte e queira desdobrar todas as potências do e-book. Aí, a gente vai ver se isso é literatura, se realmente interessa ou se vai receber um novo nome.
Nessa brincadeira da bagunça, você faz também essa mistura entre realidade, ficção, autoria, invenção no conto “Jorge, Enrique, seus personagens” – que junta o Borges com o Vila-Matas. E tem uma frase que é incrível, “Quando escurece sempre precisamos de alguém”, e cuja autoria é flutuante.
Essa frase eu preciso me lembrar se é do Vila-Matas ou se é mais algum jogo do próprio Vila-Matas (risos). O ponto de partida desse texto, e eu posso falar isso sem problema algum, é mesmo essa entrevista para o jornalista português. Eu comecei a escrever esse texto em 2012 e terminei em 2016.
Eu estava morando em Portugal, e lá tem uma revista chamada Ler, e uma delas tinha uma entrevista com Vila-Matas. E, especialmente, a frase da Marguerite Duras é citada ali. Essa frase é um clássico do Vila-Matas. Tem entrevistas em que ele diz que essa frase é da Marguerite Duras, mas tem entrevistas em que diz que adaptou a frase. E tem entrevistas em que o Vila-Matas diz que é dele. Eu fui ler a Marguerite Duras e, na verdade, é uma variação da frase. O que me chamou a atenção é que ele [Vila-Matas] jogou explicitamente com o jornalista, porque isso coloca o jornalista numa situação muito engraçada, que é o porquê ele vai acreditar no Vila-Matas. E é aí que ele está fazendo o lance performático dele, justamente, porque ele mente nas entrevistas, às vezes, ou ficcionaliza.
Como eu gosto muito de Borges, quando eu li O Mal de Montano, o Bartleby e cia, eu percebi que tinha um ar borgeano na literatura do Vila-Matas. Para mim, ele é um continuador do Borges.
É como se ele roubasse uma obra plástica e a pintasse de novo, não? E é engraçado, porque o Vila-Matas faz isso em Mac e o seu contratempo, mas com o seu próprio livro – já que o Vila-Matas recria – ou remixa – o seu primeiro livro para criar uma obra nova.
Exato. Você não sabe onde começa a ficção, o que é real. E tem a questão de jogar com a citação também.
Tem uma curiosidade sobre esse texto [“Jorge, Enrique, seus personagens”]. Eu publiquei ele numa revista de teoria literária. Tinha um dossiê aberto sobre literatura hispânica, e eu pensei: cara, isso aqui não deixa de ser um ensaio, fazendo um comentário sobre a influência de Borges em Vila-Matas. Mandei para a revista e ainda fiz uma defesa. O escopo da revista dizia que queria uma proposta diferente, e eu falei: olha, se vocês querem uma proposta diferente mesmo, então, se arrisquem a publicar uma ficção que é um ensaio. E defendi ainda que o Vila-Matas tem uma citação que diz: “eu escrevo ensaios em forma de romances”.
Se o Vila-Matas faz ensaio na forma de romances, como é que eu vou fazer um ensaio sobre o Vila-Matas se não for em forma de ficção?
É interessante essa investigação que você faz, por meio da sua literatura, entre o que é realidade e o que é ficção. Num momento em que a gente tem as fake news – que são chamados de fatos alternativos, porque as pessoas já não respeitam mais a verdade –, você recria a verdade por meio da ficção, deixando para o leitor buscar pistas.
Que bom que você tocou nesse assunto. Esse livro ganhou uma urgência para mim. Eu comecei a trabalhar nele em 2016, aí não deu certo com uma editora, dei uma retrabalhada em algumas coisas, cortei uns textos e até mudei o título. E, então, começou esse mundo em que a gente está. Na verdade, ficou mais evidente, e certos textos, que eram anteriores, começaram a ganhar uma potência – “O que não saberemos”, o próprio “SAI”. Eu pensei que se eu não publicasse esses textos agora, perderia o momento deles. Eles estão discutindo essa realidade estilhaçada em que cada um acha que é dono de alguma coisa.
E o livro toca em um tema delicadíssimo, que é a religião. Dois dos contos – “O que é o barco, o que é casa, o que é o mundo” e “No céu nunca chove” – abraçam uma discussão sobre o perigo de uma religião que domina e cria verdades. Pensando o Brasil de hoje, quais os perigos do alastramento da religião – na verdade, apenas uma religião – para campos que não são seus – como educação, cultura e saúde?
Acho que o eixo dessa pergunta é quando tu fala sobre ser apenas uma religião. Eu não sou um crítico da religiosidade, eu respeito quem quer ter religião e quem não quer. Acho que faz parte, completamente, da existência humana, em certo sentido. O Charles Kiefer, que foi um grande professor que eu tive, tem um raciocínio muito interessante em que ele prova que até mesmo a Ciência, em algum momento, parte de algum princípio de fé. Se a gente retroage nas especulações e nos cálculos da física até o Big Bang, chega um momento em que a Ciência diz: agora, a gente tem que acreditar foi assim daqui para frente. Mas, e antes do Big Bang? Se não havia um antes, havia um nada, como é que a gente explica o nada?
Então, o que a Ciência e a Filosofia nos falam: acredita, cara, acredita. Nesse sentido, a “fundação” do Big Bang é um tanto mitológica. Eu acho interessante colocar isso para que a gente baixar um pouco a nossa guarda cética e respeitar quem quer pensar as coisas de outro modo. É um ponto importantíssimo para mim, dizer que a gente tem que respeitar quem pensa as coisas de um modo diferente, então, a gente tem que respeitar quem está em religiões de matriz africana, o islamismo, o espiritismo, as religiões das tribos originárias do Brasil e do continente.
Eu tenho brincado – porque neste ano eu estou viajando bastante pelo Sesc [no projeto Arte da Palavra] e tenho visto um Brasil que eu não conhecia mesmo – que a gente está na República Evangélica do Brasil. E isso é assustador. Então, tu querer impor que o Estado tenha uma crença religiosa, já é problemático – pois deixa de ser um Estado de todos e passa a ser um Estado de uma religião – porque a gente perde o espaço do debate, a gente perde o espaço do avanço. Quando isso começa a vazar, como está vazando agora para tudo o que é lado, as coisas ficam mais complexas ainda. Especialmente, na questão da Cultura, que é onde eu atuo, se eu parto de perguntas e estas perguntas estão baseadas em uma religião, uma única religião, a resposta só pode ser sim ou não. A gente fica completamente limitado no campo da criação, no questionamento, no jornalismo.
Tem até uma expressão que eu gosto muito que diz o seguinte: o jornalismo sempre é de oposição. E eu acho que a Arte, em alguma medida, também é isso. Eu não acredito que a Arte tenha uma função, mas ela também me permite olhar de outros modos. Eu acho que a gente está vivendo um momento muito complicado de muita crença e que impacta em questões de saúde, a liberdade de escolha, o livre arbítrio – que até consta na Bíblia – e é desmentido pela conduta dessas pessoas.
E tem uma coisa que é até mais grave, fora tudo isso, que é o instrumento de manipulação de pessoas que a gente sabe que não são bem intencionadas. Eu conheço evangélicos “normais” – e que estão dispostos a sentar, tomar um café e bater um papo para discutir livros, discutir ideias, falar sobre futebol, falar sobre samba –, mas existem esses pastores, principalmente esses pastores políticos e o merda do Bolsonaro, que usam isso como instrumento de poder e de manipulação. E para eles interessa que a religião seja mesmo tosca, que ela seja dogmática, que não permita discordância, que direcione para um caminho só – e que é o caminho do bolso deles.
Isso, talvez, seja o grande problema que a gente está vivendo, que é quase uma violência. Essa exploração e manipulação das pessoas mais simples. Isso é um estelionato, um estelionato muito triste, um estelionato pela fé e pela crença, com promessas de um além.
E é engraçado porque vendem o sacrifício como paraíso. Como esse papo do Paulo Guedes, de que o pobre só é pobre porque não sabe poupar. Que conversa é essa? O rico, na maioria das vezes, só é rico porque já nasceu rico, com tendência à riqueza pelo lugar que nasceu, pelas condições que teve, ou pela grana que ele já tinha. Ou porque é uma pessoa inescrupulosa e enriquece porque não tem escrúpulos. Só que a religião parece que pode encobrir essas coisas.
Voltando para o texto, “O que é o barco, o que é casa, o que é o mundo”, eu me pergunto: o que aconteceu na Arca de Noé? E, obviamente, eu não estou dizendo que eu acredito, mas, narrativamente, o que aconteceu? Eu fui ler o Gênesis, o Noé entra na Arca e, quarenta dias depois, sai. Porém, tem toda uma história ali dentro, mas pela religião não é permitido questionar. Então, como você vai perguntar se é questionar Deus? Como fazem esse tipo de leitura, a população fica tolhida da pergunta.
Nesse conto você coloca muitos problemas do cotidiano, como o que seria feito com as fezes dos animais dentro da Arca.
Se a gente quer acreditar mesmo na Bíblia, então, vamos falar sério sobre isso. Não se discute o milagre. Claro, a Bíblia é o livro mais fácil de escrever no mundo, porque tu taca um milagre e resolve [a narrativa]. E o milagre faz parte da coerência interna da história.
Em “No céu não chove”, você subverte a ideia de religião e do sagrado. E o final do texto é incrível.
Eu tenho muito carinho por esse texto. Foi um presente que eu ganhei de uma amiga. Um dia a gente estava tomando uma cerveja, ou ela me ligou, não sei, e disse: eu tenho uma personagem que é a sua cara, uma menina que quer ser santa. Ela só falou isso, e eu fiquei: nossa, que ideia. Eu trabalhei muito para achar a história dessa menina e pensar nos impactos dessa história.
É muito curioso que a primeira versão dessa história é de 2008 e muitas discussões que estão acontecendo agora não estavam tão cerradas. E esse casal, os pais da Mariazinha, surge hoje como se fossem eleitores do Haddad e a sogra, em contraponto, é bolsonarista. E faz dez anos que eu armei o esqueleto dessa história. Eu revisei o conto em 2017, mas não pensando muito nessas coisas, mas retrabalhando linguagem e ampliando alguns pontos.
Eu acho bonito tu pegar o final do texto, porque ele é uma reflexão sobre as nossas limitações, questionando a fé. Em certa medida, a gente precisa acreditar em alguma coisa. Se existem brechas no comportamento religioso, também existem brechas no nosso comportamento.