Publicado em 1864, Memórias do Subsolo é um relato do “homem do subsolo”, um personagem-narrador que investe ferozmente contra tudo e contra todos. Em um primeiro momento, lemos o monólogo do narrador destilando seu ódio ao pensamento racionalista que começava a influir sobre a Rússia; na segunda parte do livro, o escárnio dá lugar a uma narrativa muito comum em Dostoiévski, a busca pela redenção por meio da culpa.
A novela abre a fase do escritor rumo à sua maturidade. Conforme destacado na orelha do livro, escrita pelo crítico Manuel da Costa Pinto, nesse livro “o escritor materializa sua visão abissal dos conflitos morais, psicológicos e sociais, que se interpenetram caoticamente de modo a destacar, como única medida do mundo, o desejo humano de salvação diante da morte”. No entanto, nesse caminho rumo à maturidade, dois pontos são de extremo interesse.
O primeiro deles é sua reclusão. Em 1849, Fiódor Dostoiévski foi preso por participar do Círculo de Petrachévski, um grupo de intelectuais que discutia a política russa. Junto do escritor, quinze outros foram condenados à pena de morte. No momento da execução, em 22 de dezembro, vendados e aguardando o fuzilamento, os presos ouviram a leitura do perdão do tsar. Ao invés de morrer, Dostoiévski é condenado a cumprir quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria. Nessa época ele já tinha escrito Gente Pobre e O Duplo, em 1846, um sucesso e um fracasso de vendas, respectivamente.
O segundo ponto é um pouco mais complexo e está ligado ao posicionamento ideológico e filosófico do escritor. Quando a Rússia perde a Guerra da Criméia e assina o tratado de Paris, em 1856, o país entra numa grande crise econômica. Como saída para solucionar esse problema, o tsar se vê obrigado a fazer uma série de propostas trabalhistas, arquitetônicas, econômicas e culturais para tentar modernizar a Rússia, principalmente do ponto de vista intelectual e geográfico.
Dentre as medidas tomadas, são famosas a proibição da mão de obra servil, que inseriu a Rússia no sistema econômico europeu, e a Urbanização de São Petersburgo e Moscou, que possibilitou o florescimento da indústria e atraiu os camponeses sem emprego (além disso, as outras reformas, como a trabalhista, a do alistamento militar e a do sistema judiciário, são tratadas em outras obras de Dostoiévski).
Como a França e a Inglaterra foram os grandes patrocinadores do processo de modernização russa, as influências culturais, como o Marxismo e o Ateísmo, germinaram e dividiram a intelectualidade: de um lado, o grupo de revolucionários que abraçava as mudanças culturais; do outro, intelectuais conservadores que via uma descaracterização da natureza do povo russo nesse processo.
O escritor acreditava que o crescente ateísmo não se adequava ao espírito russo, naturalmente devoto e religioso. É daí que surge um elemento tão comum em suas obras a partir de Memórias do Subsolo: o conflito entre a razão, que vinha importada da Europa, e a fé cristã, supostamente natural do povo russo.
Dostoiévski fazia parte do grupo dos conservadores, defendia o movimento pótchvienitchestvo. Com raiz na palavra potchva, que significa solo, a corrente exaltava as qualidades do camponês russo e tentava politizá-lo. Além disso, o escritor acreditava que o crescente ateísmo não se adequava ao espírito russo, naturalmente devoto e religioso. É daí que surge um elemento tão comum em suas obras a partir de Memórias do Subsolo: o conflito entre a razão, que vinha importada da Europa, e a fé cristã, supostamente natural do povo russo.
A partir daí, podemos destacar a ambiguidade presente no homem do subsolo. Ao mesmo tempo em que está ligado à aristocracia russa patriarcal deslocada do cenário agrário devido aos impactos do capitalismo, o personagem-narrador traz um acúmulo de coisas negativas, serve como porta-voz das críticas de Dostoiévski ao racionalismo, à mentalidade positivista e à porção anti-humanista presente no desenvolvimento burguês da Rússia.
A novela também tem uma forte carga filosófica. Segundo Boris Schnaiderman, Memórias do Subsolo também apresenta o conteúdo filosófico que permeia a produção de Dostoiévski. Devido à dramaticidade, à carga emocional e ao importante papel da introspecção, o pesquisador norte-americano W. Kaufman considerou Memórias do Subsolo como “a melhor introdução do existencialismo”.
Inspirando-se em Hegel, Dostoiévski representa a “consciência cindida” de quem começava a ingressar no sistema capitalista. Como afirmado ao longo de toda a narrativa, o personagem infame está ciente de seu caráter desprezível. A cena do diálogo com Lisa, uma prostituta que encontra num bordel clandestino, é o ápice do escárnio retratado. “A cena toda é uma representação assombrosa da dissonância entre o ético e o estético: a bela pregação [literária, conforme dito pelo narrador-personagem] sai dos lábios de um pregador que não tem nada de belo”, afirma Boris Schnaider em seu texto “Dostoiévski: a ficção como pensamento”, citando o crítico R. G. Nazirov.
Os textos literários, jornalísticos e filosóficos se confundiram ao longo de toda a obra de Dostoiévski. Nesse livro, é possível notar traços de influência do escritor na prosa moderna que fez com que Otto Maria Carpeaux o definisse como o mais poderoso escritor do século XIX ou XX.
Logo no começo, é possível notar a instituição do subterrâneo como um lugar metafórico para os conflitos internos. Além disso, como afirma Schnaiderman na introdução, “aquela subjetividade agressiva e torturada do narrador-personagem, o seu discurso alucinado, sua veemência desordenada, o fluxo contínuo de sua fala, que parece estar sempre transbordando, pode ser ouvido por trás da obra de muitos escritores da modernidade”.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]MEMÓRIAS DO SUBSOLO | Fiódor Dostoiévski
Editora: Editora 34;
Tradução: Boris Schnaiderman;
Tamanho: 152 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2000.
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