Na bela capa de Pílulas Azuis, vemos um casal sentado num sofá que está à deriva, boiando naquilo que parece ser o mar. O céu é vermelho alaranjado e nos rostos dos personagens, o que percebemos é uma alegria genuína, corroborada pelo traço de intimidade representado pela brincadeira que eles fazem com os pés um do outro.
Seriam náufragos felizes?
Trata-se de uma imagem repleta de significados que serão discutidos ao longo da narrativa autobiográfica do suíço Frederik Peeters. A história em quadrinhos, lançada pela editora Nemo, com tradução de Fernando Scheibe, fala, entre outras coisas, sobre a necessidade de gerenciarmos os nossos sentimentos diante de uma situação muito difícil, nesse caso: descobrir que a pessoa que você ama está doente.
A singela narrativa de Peeters prima pela simplicidade de seu traço em preto e branco e pela precisão de seu texto, pois além de bom desenhista, ele escreve muito bem, fugindo de obviedades, sentimentalismos e apresentando reflexões consistentes.
Peeters conta sobre como foi o início do relacionamento com Cati, sua então namorada, após ficar sabendo que ela e seu filho pequeno, fruto de um relacionamento anterior, eram portadores do vírus HIV. A história avança desde a reação imediata e calculada à notícia, que a princípio é tão devastadora, até o lento aprendizado e adaptações ao longo dos meses.
Afinal, ao tornar a morte um elemento tão presente no cotidiano e não apenas uma mera conjectura a respeito de um futuro aparentemente indelével, nós reconsideraríamos o que pensamos de nossa própria finitude e aquilo que estamos fazendo de nossas vidas, não?
O autor retrata este processo de maneira bastante sensível, com diversos momentos singelos, como quando ele percebe que o menino passa a enxergá-lo como uma referência afetiva ou ainda quando o casal está na cama e discute o porquê de amarem um ao outro.
Outro aspecto que chama muito a atenção é como o tratamento para a doença avançou nos últimos anos e como isso é pouco divulgado, pois o protagonista se mostra bastante ignorante, tal como o leitor mais lerdo e desinformado (tipo eu), a respeito de diversos elementos como a possibilidade de descontaminar o sangue, tomar poucas pílulas, sem muitos efeitos colaterais, e ainda, talvez o mais impactante, a desconstrução de alguns tabus a respeito da necessidade de uso da camisinha.
Por falar em camisinha, esse é um dos aspectos que o autor utiliza para demonstrar ainda no início como a necessidade de adaptação foi se moldando à intimidade do casal: “Pode parecer estranho, mas o uso da camisinha para a penetração, única coisa a que nos sentíamos obrigados, transformou-se numa espécie de ritual codificado, ora cômico, ora terno ou raivoso… Quase religioso. Assim como os muçulmanos que tiram seus sapatos na entrada de suas casas. O fato de ter que lidar com essas imposições fez com que todas as outras barreiras explodisse. Estávamos condenados a experimentar tudo aquilo a que podíamos ter direito”.
Pesa no relato do artista a perspectiva de que, além da questão da saúde debilitada, [highlight color=”yellow”]a AIDS é vista como uma chaga social[/highlight], mesmo nos dias de hoje, principalmente por causa da ignorância das pessoas. Desta forma, é tocante a preocupação do casal com o futuro de uma criança que precisa encarar o mundo lá fora carregando consigo um peso que muitas vezes nem mesmo os adultos conseguem suportar.
A singela narrativa de Peeters prima pela simplicidade de seu traço em preto e branco e pela precisão de seu texto, pois além de bom desenhista, ele escreve muito bem, fugindo de obviedades, sentimentalismos e apresentando reflexões consistentes. O autor desenvolve boas camadas de leitura não só pela gravidade e relevância do tema, que pode ser absorvido das mais diversas formas, justamente por implicar em questões mais subjetivas como experiências pessoais ou simplesmente empatia e compaixão, mas também pela sofisticação da narrativa.
Tal como o americano [tie_tooltip text=”Franklin Christenson Ware é desenhista, vencedor de diversos prémios Eisner e Harvey em variadas categorias, entre eles o Eisner (2001) de melhor álbum gráfico por Jimmy Corrigan, o garoto mais esperto do mundo e o Harvey (2006) de melhor cartunista. Publica a aclamada revista em série Acme Novelty Library pela editora Fantagraphics. Além disso, foi um dos colaboradores da revista undeground de banda desenhada RAW.” gravity=”n”]Chris Ware[/tie_tooltip], Frederik consegue desenvolver momentos pungentes em meio a uma história que no fundo é bastante pesada, em que a ausência de palavras acaba por compor [highlight color=”yellow”]uma espécie de poesia visual cheia de leveza[/highlight].
Que belo trabalho.
[box type=”info” align=”” class=”” width=“”]PÍLULAS AZUIS | Frederik Peeters
Editora: Nemo;
Tradução: Fernando Scheibe;
Quanto: R$ 28,90 (208 págs);
Lançamento: Julho, 2015.
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