Gay Talese, um dos maiores nomes do jornalismo literário, recentemente passou por um gigantesco imbróglio. Aos 84 anos, o autor de O Reino e o Poder, A Mulher do Próximo e Fama e Anonimato descobriu que, possivelmente, tenha sido enganado pelo personagem de seu mais recente livro, The Voyeur’s Motel, ainda inédito no Brasil. Gerald Foos contou, por meio de uma carta, que espionava sistematicamente os hóspedes de seu hotel – nos EUA, motel não tem o mesmo significado que por aqui – em Denver, no estado do Colorado, desde 1966.
Talese se encontrou com Foos e acompanhou uma das sessões de voyeuerismo. Não foi a primeira vez que o Gay Talese se envolveu com a vida sexual de desconhecidos. Em A Mulher do Próximo, frequentou casas de massagem, remontou a história da literatura erótica e tentou compreender a indústria do sexo para traçar um perfil sexual do povo norte-americano. A passividade do autor diante do ato eticamente contestável do dono do motel gerou um complexo processo de autocensura no autor, que se valeu do exemplo de outros colegas do novo jornalismo para tirar de suas próprias costas a culpa do que testemunhara.
Quando, na década de 1950, Truman Capote se envolveu com as investigações do assassinato brutal da família Clutter, e que desembocou no magistral A Sangue Frio, já era um romancista famoso e não precisava, necessariamente, estar ali. Capote, além de dar um passo importante para o jornalismo e a literatura, acabou por ter um breve romance – não descrito no livro – com um dos assassinos. Hunter S. Thompson foi ainda mais longe e fez parte dos Hell’s Angels para escrever sobre a gangue de motociclistas. Thompson, responsável por criar o jornalismo gonzo – experiência radical de imersão do jornalista/autor em sua reportagem –, esteve em diversas confusões e arruaças promovidas pelo grupo.
O gancho para o livro estava dado, Talese precisava apenas da permissão de Foos – que levou duas décadas para concordar. Em uma de suas espionadas, o voyeur testemunhou assassinato. Após o incidente, Foos passou a testar a ética de seus hóspedes, enviando malas que, supostamente, estariam recheadas de dinheiro.
Durante o processo de coleta das informações, que contou com o envio das anotações e conclusões do próprio Foos, Gay Talese começou a se questionar sobre o caráter ético e moral do que estava a produzir. Ainda assim, manteve-se fiel e deu a luz a The Voyeur’s Motel. Porém, o pior ainda estava por vir.
A despeito de tudo isso, a situação de Talese ficou ainda mais delicada quando jornais começaram a contestar a veracidade do que havia sido publicado.
O escândalo
Quando um trecho do livro foi publicado na prestigiada revista The New Yorker, no começo deste ano, leitores aderiram à polêmica e se posicionaram. Alguns se mostraram relutantes em acreditar na validade literária e jornalística da empreitada de Talese. Outros demonstraram entender o livro como um retrato interessante da neurose de um homem aparentemente comum – como se Norman Bates estivesse entre nós.
A despeito de tudo isso, a situação de Gay Talese ficou ainda mais delicada quando jornais começaram a contestar a veracidade do que havia sido publicado. Lacunas e informações fizeram com que, nas palavras do próprio autor, a credibilidade do livro “fosse pelo ralo”. Ao contrário do que Foos havia contado ao jornalista, o motel não fora comprado em 1966, mas sim em 1969.
O jornal Washington Post colocou em xeque a veracidade dos diários escritos por Foos. Segundo as apurações do veículo, o hotel não havia pertencido a Foos durante toda a década de 1980, ou seja, muitas das situações “testemunhadas” podem nunca ter acontecido. “Eu não devia ter acreditado em uma palavra do que ele disse”, comentou Talese ao Guardian. Mas acreditou. E por quase três décadas.
Entre a glória e a ruína, Gay Talese se mantém como um dos grandes nomes do jornalismo literário, mas coloca em xeque suas próprias práticas. Em uma passagem pelo Brasil, comentou que não usa a internet para realizar pesquisas e checar dados. Não seria o momento de rever seus conceitos? Ainda assim, como saldo, Talese deixou uma carreira com clássicos e livros imprescindíveis para qualquer jornalista. Mas que fique a lição – e o aprendizado vindo de um mestre é sempre mais valioso.