Em 1927, H.P. Lovecraft abriu o ensaio O Horror Sobrenatural em Literatura com uma ideia que se tornaria central para diversos artistas interessados no horror: “O medo é a emoção mais forte e mais antiga do ser humano, e o medo do desconhecido é o mais antigo e forte dos medos”. Nesse texto, feito sob encomenda para um amigo editor, o escritor de Rhode Island formulou um extenso guia de leitura para aqueles que quisessem entender o que é o horror sobrenatural.
Em primeiro lugar, Lovecraft está preocupado em apresentar as bases estéticas da sua literatura, como visto na necessidade do fascínio pelo desconhecido ou do medo pelo que habita outros universos:
“Essa literatura não deve ser confundida com aquele tipo de literatura de terror aparentemente similar, mas psicologicamente físico e mundanamente repulsivo. Essa escrita, certamente, tem seu lugar, assim como as narrativas de fantasmas convencionais ou extravagantes, ou mesmo histórias humorísticas de fantasmas em que o formalismo ou uma apressada deliberação do autor retira o sentido verdadeiro do que se apresenta morbidamente anormal; mas essas coisas não pertencem a uma literatura de medo cósmico em seu sentido genuíno. O verdadeiro conto sobrenatural traz algo mais do que um assassinato misterioso, ossos cobertos de sangue ou uma aparição amortalhada que faz retinir correntes segundo regras estabelecidas. Precisa estar presente certa atmosfera sufocante e um terror inexplicável de forças desconhecidas e exteriores“.
Com essa introdução, Lovecraft passa para um extenso levantamento histórico sobre o conto de horror sobrenatural. É um esforço bastante grande que busca condensar a história dessa literatura fantástica desde a antiguidade clássica até o momento mais contemporâneo, com autores como Arthur Machen, Algernon Blackwood e Lorde Dunsany.
No entanto, o começo dessa trajetória é um tanto falho. Ao retomar a ideia do poder do conto de horror ao longo da história, Lovecraft arrisca uma leitura “psicológica do medo” e comenta sobre o poder do horror em tradições satânicas e suas missas negras e também na mentalidade das religiões orientais antigas. Sua visão é bastante datada e a argumentação é um pouco fraca, mas fica mais encorpada ao retomar a trajetória partindo dos romances góticos.
É um esforço bastante grande que busca condensar a história dessa literatura fantástica desde a antiguidade clássica até o momento mais contemporâneo.
Em seu caminho surgem nomes como o de William Blake, Ann Radcliffe e Horace Walpole, (considerado o escritor do primeiro romance gótico, O Castelo de Otranto). O caminho parte em direção ao futuro: apresenta o ápice do romance gótico em Melmoth, de Maturin, pouco conhecido devido sua classificação tardia, comenta sua transformação em O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brönte, que foi um marco de transição literária rumo a “uma escola mais profunda” e chega às manifestações nos EUA e nas ilhas britânicas. Alguns dos mais conhecidos são Robert Chambers, responsável pelo Rei de Amarelo, Charlotte Perkins Gilman e seu O Papel de Parede Amarelo, junto de Rudyard Kipling e Oscar Wilde, com O Retrato de Dorian Gray.
Nesse trajeto, Edgar Allan Poe é apontado como um autor brilhante e revolucionário, que modificou as bases da narrativa do terror e do suspense e elevou a “perturbação, perversidade e decadência” ao nível das artes. Para Lovecraft, o que mais se destaca em Poe é que ele entende que “a função da ficção criativa é apenas expressar e interpretar eventos e sensações tais como são (…) com o autor sempre atuando como cronista ativo e isento, não como um professor, simpatizante ou vendedor de opiniões”.
Lovecraft também credita a Poe uma “atitude científica” nas artes, já que “estudou a mente humana mais que os moldes usuais da ficção gótica e trabalhou com um conhecimento analítico das verdadeiras fontes do terror, o que duplicou o vigor de suas narrativas e o emancipou de todos os absurdos inerentes à modelagem do terror meramente convencional”. Com sua escrita, Poe não revolucionou só o horror sobrenatural, mas também dedicou-se às narrativas detetivescas, ao terror puro e a algo que chegou perto do grotesco.
Por fim, seu levantamento trata de escritores contemporâneos e da própria postura enfática e ativista sobre a defesa do conto de horror contra uma racionalidade insurgente. Como combustível para combater o “realismo laborioso” e a “desilusão afetada”, Lovecraft diz que há um misticismo crescente e um “estímulo ao maravilhoso e à fantasia proveniente dessas visões ampliadas e barreiras rompidas pela ciência moderna com sua química intra-atômica, astrofísica avançada, as doutrinas da relatividade e avanços da biologia e do pensamento humano”.
Após a conclusão, é possível notar que o texto é um bom guia de leitura. Claramente, algumas lacunas se tornam visíveis – principalmente ao levar em consideração a distância no tempo e o próprio caráter de Lovecraft. Mas muito dos nomes citados podem ser descobertas interessantes ao leitor brasileiro e o ensaio pode fomentar novas discussões sobre o estilo.
O HORROR SOBRENATURAL EM LITERATURA | H.P. Lovecraft
Editora: Iluminuras;
Tradução: Celso Mauro Paciornik;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Junho, 2020 (atual edição).