Um de nossos maiores poetas, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), escreve sua “Anedota Búlgara”:
“Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e
andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.”
Convidaríamos o czar naturalista para um jantar em casa? Talvez ele tivesse bom gosto, soubesse falar de filosofia, discutisse os clássicos gregos citando-os no original. Mas caçava homens. O czar (ou tsar) búlgaro, embora pudesse ser russo, bósnio ou brasileiro, em nada difere da grande maioria dos tiranos que se vê mundo afora: senhores geralmente nem um pouco ilustrados que creem estar defendendo o bem-comum (provavelmente a pior ideia da humanidade).
Zbigniew Herbert (1924-1998), escreve sua “Historinha russa” bem mais sombria do que a do poeta mineiro:
“Foi envelhecendo nosso paizinho tsar, envelhecendo. Já nem mais podia esganar um pombinho com as mãos. Sentava-se em um trono de ouro e frio. Só lhe crescia a barba até o chão e abaixo. Era outro quem mandava, não se sabe quem. O povo curioso espiava pelas janelas do palácio, mas Nariztórtov cobriu as janelas com forcas. Então só os enforcados viam alguma coisa. No fim morreu de vez nosso paizinho tsar. Os sinos soavam, mas o corpo não foi retirado. O tsar enraizou-se ao trono. As pernas do trono se misturaram às pernas do tsar. Os braços penetraram nos braços do trono. Não foi possível retirá-lo. E enterrar o tsar com um trono de ouro – seria uma pena”.
O czar (ou tsar) búlgaro, embora pudesse ser russo, bósnio ou brasileiro, em nada difere da grande maioria dos tiranos que se vê mundo afora: senhores geralmente nem um pouco ilustrados que creem estar defendendo o bem-comum (provavelmente a pior ideia da humanidade).
A tradução foi cometida por mim.
O tsar herbertiano já não se convida para jantar. Teme-se-o. Enraizado ao trono, amante do poder desmedido, foi impossível tirá-lo de lá. Mesmo depois de morto. O povo que olhasse de fora veria apenas os enforcados, talvez mais ousados, talvez opositores (acusados, naturalmente, dos mais perversos crimes – pois o paizinho tsar jamais cometeria uma injustiça). No fim, o paizinho tsar era o próprio trono, o paizinho tsar tornara-se a única forma de se exercer o poder.
A terceira historinha do Leste também foi escrita por Zbigniew Herbert, tendo o poeta a intitulado “O Imperador”:
“Era uma vez um imperador. Tinha olhos amarelos e a mandíbula de rapina. Morava em um palácio repleto de mármore e policiais. Só. Despertava à noite e gritava. Ninguém o amava. Do que mais gostava eram as caçadas e o terror. Mas se fotografava com crianças entre flores. Quando morreu, ninguém ousou retirar seus retratos. Olhem, talvez ainda esteja na casa de vocês a máscara dele”.
Mais uma tradução por mim cometida.
O terceiro tsar (Cesarz, Царь – todas estas palavras originam-se do nome de César, aquele que estava fazendo exercícios estilísticos em “De Bello Gallico” enquanto o mundo conhecido pegava fogo) é, parece-me, o pior. Tem os olhos amarelos e a certamente vai atacar (pois as mandíbulas são de rapina), criou para si um estado policialesco revestido de mármore e se fotografava com crianças – crianças costumam ser inocentes, flores podem ser venenosas. E quem o convidaria para jantar? Seus apoiadores que, provavelmente, também gostam de caçadas e de terror.
Nem sua morte diminuiu o medo (ou admiração?) que causava. Seu poder nefasto se perpetua no tempo: mancha, nódoa na história do país herbertiano sem nome.
Porém, de tudo, a advertência final é a mais assustadora: a máscara dele pode estar na casa de vocês. Prestem atenção!
Diante de tanta tirania, temos uma pergunta em mente: “E agora, José?”.