Poucos são os escritores como o britânico Ian McEwan, que completou 68 anos no último dia 21. Dono de uma prosa vertiginosa e discípulo assumido da arte de manipular leitores – como bem lhe ensinou John Williams –, McEwan é figura fácil em qualquer lista literária com autores contemporâneos. Sua primeira novela, O Jardim de Cimento (1978), foi uma arrebatadora estreia, explorando o lado sombrio e mórbido das relações humanas.
Sua perspectiva insólita, que já havia aparecido nos volumes de contos Primeiro Amor, Últimos Ritos (1975) e Entre Lençóis (1978), foi acentuada nos romances que viriam a seguir. Se “Geometria Sólida”, conto de abertura do primeiro livro, foi um soco no estômago, Ao Deus Dará (1981) consolidou o apelido que o perseguiria por anos: Ian McCabro. Ainda que não fossem relatos de terror ou horror, os primeiros trabalhos do escritor mexiam com as certezas da natureza humana, seu caráter e as possibilidades de devassidão. Mais e mais autor e leitor mergulhavam em um universo estranho e desconfortável.
Se A Criança no Tempo (1987), que mais tarde faria uma dobradinha com A Balada de Adam Henry (2014) – ao explorar as possibilidades das leis e suas interpretações –, foi um romance muito mais cartesiano e comum, retratando a busca frenética de um pai por uma filha desaparecida em um mercado, O Inocente (1990) retoma o estilo e o tema que o haviam consagrado. A famosa cena do corpo sendo desmembrado na mesa da cozinha só pode ser escrita depois que McEwan passou uns dias em um necrotério ao lado de um médico legista.
Se Jonathan Franzen é o retrato do norte-americano médio, McEwan é a polaroide de uma humanidade na lama, chafurdando entre seus próprios restolhos.
É incrível imaginar que, em retrospecto, McEwan, filho de militar e sem muitos livros em casa, tenha se transformado em um escritor prodigioso. De certa maneira, ele nadou contra a corrente. Para o autor, parte dessa queda pela desgraça vem da insegurança de sua mãe em relação a coisas banais, como desligar o ferro de passar. E desse processo nasciam cenas que estimulavam a sua imaginação. “Acho que a imaginação existe, acima de tudo, para nos fazer antecipar desastres. E ela era um grande exemplo disso. Minha mãe sempre esperava que fosse voltar para casa e não encontrar nada, apenas uma ruína, e tudo por culpa dela”, disse em entrevista ao El País.
Ian McEwan sempre foi capaz de prever os desastres e as desgraças. Cães Negros (1992), um interessante deleite sobre o conflito ideológico entre um casal, apresenta um autor menos focado nas imagens e muito mais persistente nas ideias. Amor sem Fim (1997), seu livro seguinte, seria a combinação perfeita entre o poderio da imagem e a vertigem de se levar o leitor pela mão. A obsessão de um homem por outro homem e as consequências desse amor louco apresentam um cenário, ao mesmo tempo, assustador e cheio de curiosidade.
A dinâmica pautaria seus dois livros seguintes: Amsterdam (1998), com o qual ganhou o Prêmio Jerusalém, e Reparação (2002), responsável por arrebanhar milhares de leitores em todo o mundo – e, sem dúvida, seu romance mais conhecido e mais pop. Sábado (2005) é uma obra confusa e que, apesar das pesquisas técnicas, não parece se sustentar. Já Na Praia (2007), que no Brasil recebeu tradução de Bernardo Carvalho, é uma bela crônica sobre o celibato autoimposto – e bem poderia ser uma música dos Smiths ou o novo livro do Morrissey.
Solar (2010) é uma ode à preocupação com a questão ambiental, em especial o aquecimento global. Ainda que seja um dos trabalhos mais enfadonhos de McEwan, o livro tem uma das cenas mais grotescas e interessantes de assassinato/morte. Serena (2012), que foi lançado na Flip antes mesmo de sair na Inglaterra, é um romance policial à moda antiga e, novamente, levando o leitor pela mão através dos bosques da ficção. A Balada de Adam Henry, assim como Cães Negros, joga com a dicotomia entre ideologias que se confrontam – outra vez uma pesada crítica à religião.
Nutshell, que deve chegar às lojas inglesas no final de agosto, é um relato peculiar. Uma criança, ainda na barriga da mãe, será testemunha de uma conspiração (entre a mãe e o tio) para assassinar uma pessoa – ao que tudo indica seu pai. Sem previsão de lançamento por aqui, o livro deve retomar o McEwan macabro do início da carreira, capaz de chocar o leitor com poucas palavras.
Universo particular
Talvez o mais surpreendente sobre Ian McEwan seja a sua capacidade de se reinventar. Rose Blanche (1985) e O Sonhador (1994), seus dois livros infantojuvenis, não deixam dúvidas. As peças de teatro, roteiros, o libretto e outros trabalhos também compõem o universo particular de um homem capaz de se acostumar o irreal da realidade e o incomum do dia a dia.
Se Jonathan Franzen é o retrato do norte-americano médio, McEwan é a polaroide de uma humanidade na lama, chafurdando entre seus próprios restolhos.